14 dezembro 2005

Excerto de um livro não anunciado (271)

Este modo de olhar a mentira, pressupõe, naturalmente, um juízo de vincada negatividade ético-social e discursiva. Mas a questão que agora se coloca é a de saber se, ainda assim, poderemos ignorar o papel que a mentira desempenha ao nível praxis. Uma primeira advertência, a este respeito, parece vir de Simel, para quem “o valor negativo que no plano ético tem a mentira, não deve enganar-nos sobre a sua positiva importância sociológica, na conformação de certas relações concretas” (*). Ora foi precisamente a partir de uma perspectiva sociológica que Goffman estudou a estrutura dos encontros em sociedade, aqueles em que “as pessoas se vêem na presença física imediata umas das outras” (**), pondo em marcha estratégias de relacionamento que pouco devem a uma atitude de sinceridade integral. Para este autor o factor-chave na estrutura de tais encontros é a manutenção de uma definição da situação que deve ser expressa e sustentada perante uma multiplicidade de rupturas ou perturbações potenciais. Daí a sua analogia com a dramatização teatral, já que “os indivíduos que conduzem a uma interacção cara a cara no palco de um teatro têm que dar resposta às mesmas exigências de base que encontramos nas situações reais” (***). É quanto basta para se vislumbrar aqui não só a possibilidade da mentira mas também a sua própria relativização, quando encarada no concreto contexto social em que ocorre.

(*) Cit. in Carmen, M., "La máscara y el signo:modelos ilustrados", in del Pino, C. (Org.), (1998), El discurso de la mentira, Madrid: Alianza Editorial, p. 81
(**) Goffman, E., (1993), A apresentação do eu na vida de todos os dias, Lisboa: Relógio D’Água, p. 297
(***)
Ibidem