Excerto de um livro não anunciado (286)
Tinha agora (....) diante de mim, o ser mais inteligente mais frio e menos emotivo que se poderia imaginar, e, apesar disso, o seu raciocínio prático encontrava-se tão diminuído que produzia, nas andanças da vida quotidiana, erros sucessivos numa contínua violação do que o leitor e eu consideraríamos ser socialmente adequado e pessoalmente vantajoso (....). Os instrumentos habitualmente considerados necessários e suficientes para um comportamento racional encontravam-se intactos. Ele possuía o conhecimento, a atenção e a memória indispensáveis para tal; a sua linguagem era impecável; conseguia executar cálculos; conseguia lidar com a lógica de um problema abstracto. Apenas um outro defeito se aliava à sua deficiência de decisão: uma pronunciada alteração da capacidade de sentir emoções. Razão embotada e sentimentos deficientes surgiam a par, como consequências de uma lesão cerebral específica, e esta correlação foi para mim bastante sugestiva de que a emoção era uma componente integral da maquinaria da razão. Duas décadas de trabalho clínico e experimental com muitos doentes neurológicos permitiram-me repetir inúmeras vezes esta observação e transformar uma pista numa hipótese testável (*).
No que mais directamente pode interessar ao estudo da persuasão discursiva, notemos aqui como as perturbações observadas no comportamento deste indivíduo se confinam à racionalidade prática e correspondente tomada de decisão, uma e outra, nucleares no processo retórico. A primeira, porque, desde Perelman, constitui-se como fundamento e legitimação do acto de argumentar e persuadir. A segunda, por que está na base do que este mesmo autor considera ser o critério de eficácia da retórica: a adesão (ou decisão de aderir).
(*) António Damásio, (1995), O Erro de Descartes, Mem Martins: Publicações Europa-América, (15ª. ed.), p. 13
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