09 dezembro 2008

O homem.com medo de si próprio (10)

É ainda possível detectar no homem um outro processo de diminuição de esforço, que se reveste, aliás, de importância capital: a tendência para criar hábitos, para formar rotinas, numa palavra, para automatizar o efeito. Ora é precisamente neste contexto que Gehlen defende que a técnica obedece, desde os seus princípios, a determinantes instintivas, inconscientes, vitais, identificando tais características humanas com o princípio da economia de esforço e a tendência para automatizar os efeitos, que se tornam responsáveis pela evolução da técnica. Não que uma qualquer invenção isolada delas derive directamente, pois, por exemplo, o funcionamento de um motor é explicado pelas relações puramente físicas e técnicas. Mas sem dúvida que é “a evolução conjunta da técnica que atesta uma lógica subjacente, inconsciente, mas coerentemente prosseguida, que só se pode descrever por meio dos conceitos da progressiva objectivação do trabalho humano e da crescente diminuição de energia dispendida” [25]. Trata-se de um processo geral que se desenvolve em três graus:

- Primeiro grau: o da ferramenta. É ainda o sujeito que emprega a força física necessária para o trabalho e o requerido esforço intelectual.

- Segundo grau: o da máquina de trabalho e energia. A força física é objectivada tecnicamente.

- Terceiro grau: o do autómato. O próprio esforço intelectual do sujeito é substituído por meios técnicos.

Em cada um destes graus dá-se um processo de objectivação para alcançar determinado fim através de meios técnicos, observando-se a cada vez maior autonomia destes, até que, no terceiro e último grau, esse fim se atinge simplesmente por intermédio do autómato, sem intervenção corporal ou intelectual. Naturalmente que esta fase de automatização é aquela em que a técnica atinge a sua maior perfeição metódica. E é também nesta fase – onde se conclui o processo evolutivo da objectivação técnica do trabalho (cujas origens remontam à pré-história) – que se pode situar a característica mais definidora da nossa época.

Logo se vê, portanto, que não é exactamente a mesma técnica que nos surge em cada um dos respectivos graus de objectivação. No primeiro grau, o da ferramenta, dir-se-á que estamos perante uma técnica artesanal, ainda definível como mero recurso a determinados instrumentos, cuja simplicidade de manejo chega e sobeja para produzir os resultados que se esperam. Já no segundo, o da máquina, a técnica começa a ter que ver com determinado conjunto de processos e metodologias que permitem a aplicação dos conhecimentos científicos quer na investigação, quer na transformação da própria realidade. Por último, o terceiro grau, marcado, como já se viu, pelo automatismo, é o que acabará por se identificar com uma noção de técnica mais actualizada, mais moderna e sofisticada: as novas tecnologias.

O que à primeira vista mais surpreende, porém, é o facto da técnica só muito tarde ter entrado nos domínios que durante milhares e milhares de anos estiveram reservados à magia, ou seja, à técnica sobrenatural, a qual, como se sabe, foi a que primeiro imperou nas épocas em que se conhecia apenas a primitiva técnica da ferramenta. Note-se, porém, que já essa magia pretendia desviar as coisas dos seus caminhos próprios para o nosso serviço, procurando, ainda que inconscientemente, potenciar a eficácia e multiplicar as zonas de alcance da acção da mão humana. [cont.]

[25] A. Gehlen, (s/d), A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Lisboa: Livros do Brasil, p. 28

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, p. 23

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