01 dezembro 2005

O transplante facial e a retórica

Há precisamente dois anos e dois dias, iniciei o meu post "Vem aí o homem sem rosto?" com a pergunta :

será tão aterradora como parece a anunciada hipótese dos médicos passarem em breve a transplantar também rostos de cadáveres para seres vivos?

Se a pergunta se justificava já nessa altura em que o transplante facial não passava ainda de mera hipótese anunciada, mais pertinente parece mostrar-se agora que acaba de se tornar realidade, segundo esta notícia do JN de hoje:

"Face Humana Transplantada

Pela primeira vez foi transplantada uma face humana. A cirurgia foi realizada em França, no passado fim de semana, mas apenas é sabido que a paciente foi uma mulher de 36 anos, que perdeu o nariz, a boca e o queixo, na sequência do ataque de um cão. Uma operação deste tipo tinha, há meses, sido anunciada como intenção por cirurgiões norte-americanos, mas os franceses anteciparam-se. De qualquer modo, os procedimentos cirúrgicos beneficiam da investigação que vem sendo feita em diversos países.
Os médicos afirmam que a operada não se irá parecer com o doador, nem com ela própria antes de ser desfigurada, desconhecendo-se ainda o processo de "composição" da nova expressão facial. Também se desconhece o impacto psicológico dos resultados.
A operação implica a retirada da pele, veias e gordura de um dador e obriga a uma terapêutica à base de imunossupressores, tal como noutros transplantes. No período pós-operatório, há o risco de os vasos sanguíneos do tecido doado formarem coágulos.
Questões éticas também têm envolvido este procedimento cirúrgico. Se bem que as informações indiquem que a face foi retirada de um dador morto, médicos indicam que este tipo de transplante terá de ser feito com base na face de um dador cujo coração ainda bata, antes de ser desligado o ventilador nos cuidados intensivos em que se encontre."


Preparemo-nos, então, porque vem por aí muita retórica. Mas dizer que vem por aí muita retórica nem por sombras é sugerir que a lógica não será para aqui chamada. Pelo contrário, a lógica é imprescindível a qualquer processo de argumentação, incluindo o que tem lugar na retórica. Só a lógica disciplina o nosso raciocínio e nessa medida, cauciona (ou não) a particular forma como se chegou a determinada conclusão. Digo que vem aí muita retórica e não apenas lógica, porque quando um assunto interessa a mais alguém, maxime, a toda a comunidade (e não apenas a uma suposta elite de sábios), não basta ter as melhores razões, não basta usar argumentos formalmente válidos, não basta alegar a evidência de uma ideia ou proposta. É preciso também saber persuadir os (con)cidadãos quanto à bondade da solução que se defende. Quanto mais não fosse, porque na vida em comum, todos têm legitimidade para procurar convencer o outro sobre a valia das suas ideias, das suas convicções e das suas propostas, se honestamente as vêem como as que melhor respondem aos interesses da comunidade.

Que venha a retórica, mas uma retórica crítica, sem infracções lógicas (formais ou informais) e com interlocutores de boa-fé, que se preocupem em persuadir a outra parte daquilo em que acreditam mas sem qualquer cedência ao artifício, ao truque, à deturpação ou engano (*). Será a melhor forma de reflectirmos sobre as questões éticas, humanas e sociais que o incremento desta revolucionária técnica de transplante facial vai seguramente levantar. É um ideal, claro. Mas alguma coisa valeria a pena sem um ideal?

(*) De resto, nenhum destes desvios argumentativos consta de qualquer compêndio de retórica.