O olhar mediático
"Olho em volta, que é como quem diz leio jornais e vejo TV"
Manuel António Pina (*)
Era David Hume quem dividia as percepções da mente em duas espécies, segundo os seus diferentes graus de força e vivacidade. As menos fortes e vivazes seriam os pensamentos, as ideias. Às outras, chamou-lhes “impressões”, querendo com isso dizer “todas as nossas percepções mais vívidas, sempre que ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou desejamos ou exercemos a nossa vontade”. Nenhuma evocação ou antecipação imaginária teria, por isso, a mesma força que possui a experiência original, de que ambas são meras cópias. Mesmo quando a memória e a imaginação “representam o seu objecto de uma maneira tão vívida que quase podemos dizer que o vemos ou sentimos”, ainda aí, segundo Hume, o pensamento ficaria sempre aquém da “mais obtusa das sensações”.
A questão que levanta o mediático “olhar em volta” do poeta Manuel António Pina é a de saber se ainda será defensável uma tão irredutível diferença entre a “experiência primeira” e a sua representação, entre a sensação “ao vivo” e o reminiscente pensamento. Não apenas porque os “media” se afirmam hoje como protésica extensão dos nossos olhos e dos nossos ouvidos mas, sobretudo, porque mesmo se nem sempre retratam o mundo com toda a fidelidade, fazem-no, porém, sob diferentes ângulos, cores, formas, ritmos e efeitos que escapariam, por certo, à “percepção natural” ou directa.
Daí que a realidade mediática seja sempre uma outra realidade, uma realidade que tem em conta o mundo tal como é mas também o mundo que pode (ou que poderia) vir a ser. Está em causa, pois, muito mais do que um olhar fotográfico. Ler jornais, ouvir rádio, ver televisão, é também aceder à contínua reelaboração do mundo da vida. E isto porque a representação surge cada vez mais colada ao real que, a um tempo, representa e enriquece.
Torna-se assim muito problemático aceitar que as “impressões”, no sentido humeano, possam continuar teórica e exclusivamente alocadas à “experiência primeira” até porque, num certo sentido, a mediatização desta última dá origem, ela própria, a uma nova experiência “ao vivo”, na qual, como não poderia deixar de ser, também ouvimos, vemos, sentimos, amamos ou odiamos, desejamos ou exercemos a nossa vontade. Faz por isso todo o sentido o feliz dizer do poeta: “Olho em volta, que é como quem diz leio jornais e vejo TV".
(*) in Visão, 23 de Fevereiro 2006
Manuel António Pina (*)
Era David Hume quem dividia as percepções da mente em duas espécies, segundo os seus diferentes graus de força e vivacidade. As menos fortes e vivazes seriam os pensamentos, as ideias. Às outras, chamou-lhes “impressões”, querendo com isso dizer “todas as nossas percepções mais vívidas, sempre que ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou desejamos ou exercemos a nossa vontade”. Nenhuma evocação ou antecipação imaginária teria, por isso, a mesma força que possui a experiência original, de que ambas são meras cópias. Mesmo quando a memória e a imaginação “representam o seu objecto de uma maneira tão vívida que quase podemos dizer que o vemos ou sentimos”, ainda aí, segundo Hume, o pensamento ficaria sempre aquém da “mais obtusa das sensações”.
A questão que levanta o mediático “olhar em volta” do poeta Manuel António Pina é a de saber se ainda será defensável uma tão irredutível diferença entre a “experiência primeira” e a sua representação, entre a sensação “ao vivo” e o reminiscente pensamento. Não apenas porque os “media” se afirmam hoje como protésica extensão dos nossos olhos e dos nossos ouvidos mas, sobretudo, porque mesmo se nem sempre retratam o mundo com toda a fidelidade, fazem-no, porém, sob diferentes ângulos, cores, formas, ritmos e efeitos que escapariam, por certo, à “percepção natural” ou directa.
Daí que a realidade mediática seja sempre uma outra realidade, uma realidade que tem em conta o mundo tal como é mas também o mundo que pode (ou que poderia) vir a ser. Está em causa, pois, muito mais do que um olhar fotográfico. Ler jornais, ouvir rádio, ver televisão, é também aceder à contínua reelaboração do mundo da vida. E isto porque a representação surge cada vez mais colada ao real que, a um tempo, representa e enriquece.
Torna-se assim muito problemático aceitar que as “impressões”, no sentido humeano, possam continuar teórica e exclusivamente alocadas à “experiência primeira” até porque, num certo sentido, a mediatização desta última dá origem, ela própria, a uma nova experiência “ao vivo”, na qual, como não poderia deixar de ser, também ouvimos, vemos, sentimos, amamos ou odiamos, desejamos ou exercemos a nossa vontade. Faz por isso todo o sentido o feliz dizer do poeta: “Olho em volta, que é como quem diz leio jornais e vejo TV".
(*) in Visão, 23 de Fevereiro 2006
<< Home