17 setembro 2006

"Comprar" o árbitro

[O pior reflexo do Apito Dourado é] a sensação de que debaixo do Portugal formal, sério e democrático continua a existir impunemente um outro Portugal sórdido, velhaco e corrupto. Em paralelo com a vida normal da maioria dos cidadãos zelosos e cumpridores, subsistem hábitos enraizados nos quais não há vestígios de decência ou de respeito pelos outros e pela lei.

Manuel Carvalho
in “O Submundo do futebol”, Público, 15 Setembro 2006


Concordaria totalmente com o que acima diz Manuel de Carvalho se estivesse tão certo de que os cidadãos zelosos e cumpridores ainda são uma maioria neste país. Mas não estou. Além disso, falta saber se os que vão cumprindo o fazem por imperativo ético ou somente por temor, falta de rasgo ou impossibilidade prática. Num país onde, como é sabido, há longos anos impera a cultura da "cunha" e da "troca de favores", temo até que estejamos quase todos mais perto de um pequeno "ilícito" do que do escrupuloso e formal cumprimento da lei.

Assim como as ervas daninhas só crescem em terreno propício, também no nosso futebol, não seria tão fácil "comprar um árbitro" se a própria ideia de "comprar um árbitro" não fosse já ela mesmo, uma ideia corrente, normal e perfeitamente aceitável no mundo da bola. Quando me refiro ao mundo da bola estou a pensar em todo o tipo de dirigentes e simples adeptos, do cidadão mais rude ao mais refinado, do empregado de escritório ao grande empresário, do dirigente político-partidário aos nossos mais altos representantes.

Todos, quase todos, ou pelo menos, muitos dos que gostam de futebol, como que se submetem a uma lavagem ao cérebro quando entram num estádio para aplaudir o seu clube de eleição. É um momento mágico, de verdadeiro transformismo. O cidadão imparcial e exemplar passa a ver só com um olho e a comportar-se como culturalmente sub-desenvolvido. Os grandes princípios e valores que enformam a sua vida profissional, social e familiar, parecem evaporar-se. Que o seu clube ganhe com um golo marcado com a mão, ou devido a qualquer outro erro do árbitro, não interessa. O que interessa é ganhar a todo o custo.

Nessas alturas, a axiologia pessoal amolece e adapta-se, sem remorsos, à paixão clubista do seu portador. Vale tudo para chegar à vitória, se possível, antes do próprio jogo. E é aí que entra ou pode entrar o árbitro, o nomeado ou aquele que com alguma "arte" e cúmplice influência, ainda se vai a tempo de escolher. Quanto custa? Já não interessa. O mal está feito e não será o pagamento em dinheiro ou espécie, nem o seu montante, que o vai agravar ou reduzir. O dirigente faz o trabalho "sujo" enquanto o adepto, exulta e fecha os olhos, para ver melhor (e apenas) a corrupção dos outros clubes.

Todos sabemos que foi sempre mais ou menos assim. Faz parte de uma distorcida cultura desportiva que é a nossa e que chegou ao estado a que chegou. Por isso mesmo, mais do que protestar ou mostrar publicamente uma cândida surpresa pelos fortes indícios de corrupção, interessa agora contribuir para a formação de um critério de maior exigência ética na competição desportiva, particularmente, no chamado futebol profissional. O que poderia muito bem começar pelos media, nomeadamente, nos seus espaços de debate sobre o desporto-rei. Em qualquer dos casos, tomem-se as medidas que se impõem, faça-se justiça. Mas não se negligencie a promoção de uma sã cultura desportiva, que é o que falta.