O homem.com medo de si próprio (1)
Introdução
Há muito que a tradição foi destronada pelo novo, pelo nunca vivido ou experimentado. De um momento para o outro, são milénios de história que ficam para trás e, reduzido agora à incessante projecção da novidade, o presente quase deixa de existir. Sobrevive, claro, mas já não como verdadeiro presente porque é, cada vez mais, mera versão tecnológica de um futuro antecipado. Já não precisamos, pois, de recorrer a profecias ou à ficção para poder imaginar os perigos que nos esperam se não soubermos controlar o nosso constitutivo fascínio pela técnica dentro de indeclináveis limites éticos.
São perigos que nos espreitam, que acompanham cada invenção humana, cada passo para o mundo de amanhã. São perigos ou riscos que urge definir se vale a pena correr. Importa por isso reanalizar não só a relação que o homem vem mantendo com a técnica como o proeminente lugar de que esta desfruta na sociedade contemporânea, com destaque para a sua (desmesurada?) autonomia decisória. Esta é, como se sabe, uma das preocupações centrais no pensamento de Arnold Gehlen, que aqui seguirei de perto, para quem a ideologia técnica, ao invadir a cultura, passou a modelar a consciência humana em domínios da vida que não se lhe ajustam. Chegou-se assim à situação paradoxal em que o homem se encontra agora, ao ter medo de si próprio, situação que, em última instância, aponta para a necessidade de se submeter o chamado progresso técnico a um mais apertado crivo ético.
Pelo caminho, confrontar-nos-emos com a falência de todas as éticas tradicionais, perante a originalidade e dimensão dos quase ilimitados poderes técnicos de que o homem só muito recentemente passou a dispor. O pensamento ético, que Isaiah Berlin associa à pesquisa de “convicções quanto ao modo como a vida deve ser vivida” é, porém, absolutamente imprescindível à configuração do humano. Não se estranhe, então, que a impossibilidade de confiarmos no critério da tecnociência para decidir sobre projectos humanos, assim como a necessidade de um cada vez maior policiamento do poder técnico e a adopção de um novo imperativo categórico (o de Hans Jonas), surjam como algumas das possíveis respostas às crescentes preocupações pelas intervenções técnicas potencialmente mais perigosas, como são aquelas em que o homem figura como objecto da própria tecnologia que criou.
No final, veremos ainda como as três principais interpretações sócio-filosóficas a que os próprios cientistas vêm submetendo o rumo do actual desenvolvimento técnico conduzem, afinal, a um ponto comum: a urgência de um alargado consenso quanto aos riscos que a humanidade está disposta a correr. Riscos de que todos temos não só legitimidade para prever, mas também a responsabilidade de prevenir.
__________
in Américo de Sousa (2004), O homem.com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 9-10
Há muito que a tradição foi destronada pelo novo, pelo nunca vivido ou experimentado. De um momento para o outro, são milénios de história que ficam para trás e, reduzido agora à incessante projecção da novidade, o presente quase deixa de existir. Sobrevive, claro, mas já não como verdadeiro presente porque é, cada vez mais, mera versão tecnológica de um futuro antecipado. Já não precisamos, pois, de recorrer a profecias ou à ficção para poder imaginar os perigos que nos esperam se não soubermos controlar o nosso constitutivo fascínio pela técnica dentro de indeclináveis limites éticos.
São perigos que nos espreitam, que acompanham cada invenção humana, cada passo para o mundo de amanhã. São perigos ou riscos que urge definir se vale a pena correr. Importa por isso reanalizar não só a relação que o homem vem mantendo com a técnica como o proeminente lugar de que esta desfruta na sociedade contemporânea, com destaque para a sua (desmesurada?) autonomia decisória. Esta é, como se sabe, uma das preocupações centrais no pensamento de Arnold Gehlen, que aqui seguirei de perto, para quem a ideologia técnica, ao invadir a cultura, passou a modelar a consciência humana em domínios da vida que não se lhe ajustam. Chegou-se assim à situação paradoxal em que o homem se encontra agora, ao ter medo de si próprio, situação que, em última instância, aponta para a necessidade de se submeter o chamado progresso técnico a um mais apertado crivo ético.
Pelo caminho, confrontar-nos-emos com a falência de todas as éticas tradicionais, perante a originalidade e dimensão dos quase ilimitados poderes técnicos de que o homem só muito recentemente passou a dispor. O pensamento ético, que Isaiah Berlin associa à pesquisa de “convicções quanto ao modo como a vida deve ser vivida” é, porém, absolutamente imprescindível à configuração do humano. Não se estranhe, então, que a impossibilidade de confiarmos no critério da tecnociência para decidir sobre projectos humanos, assim como a necessidade de um cada vez maior policiamento do poder técnico e a adopção de um novo imperativo categórico (o de Hans Jonas), surjam como algumas das possíveis respostas às crescentes preocupações pelas intervenções técnicas potencialmente mais perigosas, como são aquelas em que o homem figura como objecto da própria tecnologia que criou.
No final, veremos ainda como as três principais interpretações sócio-filosóficas a que os próprios cientistas vêm submetendo o rumo do actual desenvolvimento técnico conduzem, afinal, a um ponto comum: a urgência de um alargado consenso quanto aos riscos que a humanidade está disposta a correr. Riscos de que todos temos não só legitimidade para prever, mas também a responsabilidade de prevenir.
__________
in Américo de Sousa (2004), O homem.com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 9-10
Etiquetas: A retórica da técnica
<< Home