12 julho 2008

O homem.com medo de si próprio (3)

Foi preciso esperar pela ciência grega (episteme), cujo saber teórico-abstracto e especulativo se distanciava da utilidade prática e imediata da técnica, para se poder falar, aí sim, de uma notória diferença entre técnica e ciência. A primeira, normalmente apoiada numa tradição de saber muito virado para a acção, para a utilidade; a segunda, feita de pensar filosófico, logo, mais orientada para a verdade ou para a contemplativa compreensão do real. Nesse tempo, eram estes os principais traços distintivos entre técnica e ciência. E assim se mantiveram praticamente até ao Renascimento.

Com os modernos, a ciência passou a ser encarada, basicamente, como instrumento de transformação da natureza, perdendo o carácter abstracto e especulativo da ciência grega. Esta, que sempre se mantivera afastada dos aspectos empíricos e práticos ligados à esfera da produção económica, foi progressivamente substituída pela ciência moderna. O processo consistiu, por assim dizer, na fusão das duas tradições pré-existentes: “a tradição artesanal e a tradição intelectual. Isto é, a tradição dos que fazem (artesãos, engenheiros), adquirindo por isso um certo conhecimento empírico, e a tradição dos que pensam (intelectuais, religiosos), produzindo especulação pura sobre a natureza das coisas, cosmologias quase sempre justificativas da ordem natural e social, e preservando os textos do saber escolástico”
[2] . O resultado foi uma cada vez mais virtuosa combinação entre ciência e técnica, que veio a transformar todo o tecido económico e as próprias estruturas sociais de relação e poder. A partir daí, técnica e ciência não mais se separaram, pelo menos com a mesma nitidez do passado. O desenvolvimento do conhecimento científico passa a depender dos avanços técnicos que, entre outras coisas, tornam possíveis as experimentações repetidas, enquanto que os instrumentos e as respectivas operações técnicas, anteriormente confinados à intuição, ao costume e à tradição de saberes locais, passam igualmente a beneficiar dos conhecimentos que são sistematicamente adquiridos pela via científica, e portanto, de validade universal.

É neste regime de unidade ou interdependência entre a técnica e a ciência que se pode situar o aparecimento do próprio termo tecnologia para designar uma “teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da actividade humana (por ex., indústria, ciência, etc.)”
[3] - no que se aproxima do conceito de ciência. Curiosamente, porém, tecnologia pode significar, igualmente, tanto o conjunto de técnicas de um domínio particular, como qualquer técnica moderna e complexa, ou uma técnica avançada de última geração – com isto se confundindo, afinal, com a própria técnica, na sua acepção mais tradicional.Confirma-se, portanto, que não há hoje em dia uma delimitação muito precisa entre técnica, ciência e tecnologia, quer do ponto de vista semântico, quer ao nível das respectivas práticas técnico-científicas. E, se tal acontece, é seguramente porque têm muito em comum. Desde logo, quanto à sua finalidade, já que qualquer delas se orienta para um resultado útil, aqui entendido naquele sentido muito amplo que vai da melhoria das condições de vida humana às novas invenções ou descobertas, passando pelo aumento do poder de controlo e domínio sobre a natureza e, mais recentemente, sobre a própria evolução da espécie. Depois, porque nenhum desses três domínios - técnico, científico e tecnológico - se afirma, hoje, isoladamente, sem recorrer aos demais. É assim com a ciência, que precisa de instrumentos, aparelhos e procedimentos técnicos para se operacionalizar. É assim com a tecnologia, que se apoia na teoria e no estudo sistemático das respectivas técnicas para potenciar novas descobertas. É assim com a própria técnica que, longe da arcaica habilidade ou destreza manual em que originariamente se fundava, é agora, ela própria, um sofisticado produto da actividade científica com a qual, de resto, interage. Não surpreende então que, no âmbito de uma filosofia crítica da cultura, quando se fale simplesmente de técnica ou de escalada da técnica se queira, com isso, prefigurar os prodigiosos avanços técnico-científicos do nosso tempo. [cont.]
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[2] Deus, J. D., (2003), DA CRÍTICA DA CIÊNCIA À NEGAÇÃO DA CIÊNCIA, Lisboa: Gradiva, p. 23

[3] DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002, p. 3474

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 13-15

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