O homem.com medo de si próprio (7)
Durante uma grande parte da sua história, a humanidade não dispôs de mais do que recursos técnicos muito modestos, apesar de corresponderem a invenções altamente engenhosas para a época. Que razões terão estado por detrás deste marcar passo? Eis a questão que Gehlen chama a si próprio para lembrar que durante milhares de séculos o homem de todas as culturas primitivas e de todas as altas culturas como a egípcia, a grega e a romana, estava preso a uma outra ideia muito diferente que era a da possibilidade de uma técnica sobrenatural (aquilo a que hoje chamamos magia). E foi essa magia que desde as épocas pré-históricas ocupou um papel central na concepção do mundo e do homem, sobrevivendo sempre, inclusive, em ambientes adversos, como no caso das culturas monoteístas – tenha-se em vista os processos de bruxas e feitiçarias da Idade Média. Magia que, para Maurice Pradines, pode ser definida como “tentativa para produzir alterações que beneficiem o homem, desviando as coisas dos seus caminhos próprios para o nosso serviço” [15]. Ora, como se pode notar, esta é uma definição que não só abrange a magia como a própria técnica, ou, se quisermos, a técnica sobrenatural e a técnica natural.
Questão intrigante: o que explicará a extraordinária expansão da magia em todo o mundo e em todas as épocas? Gehlen limita-se a admitir que ela radicará em algo de antropologicamente fundamental, já que não se pode tirar outra conclusão quando continuamos a observar práticas mágicas perfeitamente estereotipadas, independentemente de raças e de graus de cultura. Por exemplo, o feitiço da chuva - a orientação ou provocação dos fenómenos meteorológicos - está presente tanto nos indígenas da Nova Britânia, como nos índios de Omaha, bantus das Delagoaba e nos chineses. Há aqui como que um recorrente arcaísmo do pensamento que se tem mostrado verdadeiramente irredutível, mesmo quando confrontado com o assombroso desenvolvimento das mais modernas tecnologias.
Aliás, é o próprio desenvolvimento das tecnologias que acaba por conduzir a questões de ordem mítica que reaparecem hoje com mais força do que a que tinham antes. Compreende-se, por isso, a muito actual observação de Marc Augé: “Definimos, por vezes, a modernidade como a passagem dos mitos de origem aos mitos do futuro, aos mitos escatológicos, a imagens radiosas, ao progresso. Agora, com o desenvolvimento da tecnologia, colocamos questões às quais o pensamento mítico (para não dizer simbólico), aquele que se exprime pelos mitos, de alguma maneira pré-simbólico, dava forma. A versão agradável ou banal desta questão é-nos dada pelos filmes de ficção científica. Muitos só imaginam o futuro tecnológico sob a forma de coisas mais arcaicas” [16]. [Cont.]
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[15] Cit. ibidem, p. 23
[16] Atlan, H., et al (2001), CLONAGEM HUMANA, Lisboa: Quarteto Editora, p. 143
in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 19-20
Etiquetas: A retórica da técnica
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