Dormir com a dúvida
Não faço a mínima ideia sobre quem é que tem razão em qualquer dos conflitos, quem lhes deu origem ou de quem é a culpa. Mas parece que também não é propriamente isso que move os beligerantes (ou quem os apoia). O que os move, está bom de ver, não é a procura da razão mas antes a satisfação de um particular interesse, seja o da concreta apropriação política e económica do território, seja o da chamada vantagem geoestratégica.
Porque a razão não se combate com armas e violência, com mortes e destruição. A razão, quando é caso disso, combate-se com argumentos. Seja, porém, qual for o cartório das culpas e os sujeitos da sua imputação, a ninguém passa despercebida a duplicidade de atitudes e opiniões dos actuais senhores do mundo (sem aspas). No espaço de 6 meses, estes sim, viraram completamente o bico ao prego: a Rússia, que esteve contra a independência do Kosovo é agora a favor da independência da Ossétia do Sul; os EUA, que apoiaram a independência do Kosovo, nem querem pensar na independência da Ossétia do Sul.
Ora a verdade é que, como se lê neste comentário de lucasdasilva:
"Se o Kosovo sendo parte integrante e berço da nação Sérvia teve direito à independência, declarada unilateralmente e reconhecida de imediato pelo EUA e por alguns Estados da UE, porque não pode a Ossétia seguir o mesmo caminho. Se a questão é de qual a maioria dos residentes, no Kosovo, eram kosovares de origem albanesa, na Ossétia são ossetas de origem russa. Os guardiães da democracia não podem ter dois pesos e duas medidas, os argumentos que serviram para o Kosovo, devem servir para a Ossétia do Sul”
Pode-se por isso achar estranho que Vital Moreira comente o assunto sem dirigir uma única palavra (contra ou a favor) à ocupação da Geórgia pelos blindados russos. Mas nem isso diminui o acerto da sua crítica à duplicidade de reacções. É que está-se mesmo a ver que se a Sérvia tivesse feito ao Kosovo o mesmo que a Geórgia fez agora à Ossétia do Sul, não teria tido por parte dos EUA o mesmo apoio e solidariedade que estes vêm dispensando à Geórgia. Ou teria?
Bem sei que a carapuça da duplicidade de reacções, que Vital Moreira enfia apenas aos que estão contra a Rússia, pode igualmente servir aos que criticam os EUA. Tal como não é o facto de uns e outros terem agido desta ou daquela maneira no Kosovo que faz com que estejam agora certos (ou errados) no caso da Ossétia do Sul. O problema é que para bem se compreender o que publicamente declaram estes senhores do mundo e da guerra, não basta conhecer o teor da sua mensagem, é essencial descobrir também a real intenção que os anima. Temos, em suma, que desviar a atenção do que é dito para a credibilidade de quem o diz. E é aqui que entra a duplicidade e a desconfiança a que a mesma invariavelmente conduz: quando os EUA e a Rússia mudam de "clube" conforme o campo onde o “jogo” é disputado, nada acrescentam à sua credibilidade internacional. O que não é nada bom. Porque, não nos iludamos: no teatro de operações desta guerra do Cáucaso, são os EUA e a Rússia que aparecem como actores principais e deles, sobretudo, depende que o desfecho venha a ser mais ou menos (in)feliz.
Talvez que nos últimos 20 anos as coisas tenham corrido demasiado bem para o lado americano ou, se se quiser, para o lado ocidental, com a Rússia a ser progressivamente remetida, no dizer de João Pereira Coutinho (1) ao "estatuto de inferioridade que o Ocidente lhe reservava em recorrentes confrontos diplomáticos e geoestratégicos". De inferioridade e até de humilhação, acrescente-se, se se pensar, por exemplo, nas mais do que provocadoras promessas a antigas repúblicas soviéticas de adesão à União Europeia e à Nato ou na instalação do sistema de anti-mísseis americano na República Checa e na Polónia.
"Ninguém gosta de ser cercado", lembra ainda Coutinho, e de facto, o cerco à Rússia, se não é, parece. Daí que ao fazer avançar os seus tanques pela Geórgia dentro, sob a capa da Ossétia do Sul, a Rússia tenha pretendido, acima de tudo, enviar um sério aviso aos EUA e aos seus seguidores: "parem lá com o cerco, que já foram longe de mais". E parece que foram mesmo, a avaliar pela crueza com que Orly Azoulay (2) faz o balanço da guerra do Caúcaso: "a Rússia venceu, a Geórgia perdeu e os Estados Unidos foram estrondosamente derrotados". Pior do que isso, os russos estarão agora na disposição de responder à arrogância americana com uma autêntica "tolerância zero" a mais cedências na sua política de defesa e segurança estratégica. A Rússia, tudo o leva a crer, pôs fim ao sistemático recuo a que a vinham forçando na cena internacional. Mas a pergunta que se pode fazer é se ainda teria mais para onde recuar.
Certo é que a corda está tão esticada que a guerra foi suspensa mas continua à espreita. E a avaliar pela série de avisos, acusações e ameaças que os EUA e a Rússia insistem em trocar, o conflito parece mais próximo do princípio do que do fim. É a retórica tomada, no mais indevido dos seus usos, "como arma de arremesso acusatória no discurso" (3). Mas perante uma Rússia manifestamente encurralada, que sentido diplomático fará, por exemplo, vir o chefe de Estado norte-americano dizer que não interessa aos Estados Unidos manter uma relação conflituosa com a Rússia, ao mesmo tempo, que Condoleezza Rice com todo o estrondo mediático acusa o país de Putin de actuar como "fora da lei"? E que contributo positivo para o regresso de uma paz duradoura poderia ter dado o presidente francês, Nicolas Sarkozy, quando há quatro ou cinco dias ameaçou a Rússia de vir a enfrentar "sérias consequências", se não iniciasse a retirada? A questão é: o que pode gerar esta agressividade? Claro: mais agressividade. Não surpreende por isso que o presidente russo Medvedev despropositadamente resolva advertir de que qualquer agressão contra cidadãos russos terá uma pronta resposta esmagadora. Ou que o chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov, tenha sentido necessidade de afirmar que a posição adoptada pela NATO no que respeita ao conflito na Geórgia «vai ter consequências», na relação da organização com Moscovo.
Ainda bem que, no meio desta poeira belicista, alguém soube manter a serenidade e a lucidez suficientes para defender em Bruxelas que a Rússia e a Europa precisam uma da outra e que "é justamente em tais situações que o diálogo se faz necessário". Convirá, porém, olhar para o diálogo como um meio e não como um fim, pois um diálogo em que as partes se limitem a verbalizar o seu inamovível interesse ou a maior vantagem possível, está condenado ao fracasso. Para que o diálogo não seja apenas a continuação da guerra por via pacífica, é imperioso que da retórica do interesse se passe à retórica da razão, o que, por sua vez implica, não apenas descobrir racionalmente a solução mais justa, mas (e principalmente) obedecer ao imperativo ético de a aceitar, mesmo quando não conduza aos resultados políticos mais favoráveis ou ambicionados. Teremos gente para isso? Por mim continuo a dormir com a dúvida.
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(1) in "Única", Expresso, 15 Agosto 2008
(2) Correspondente em Washington do israelita Yedioth Ahronoth, citado há dias, no Público, por Jorge Almeida Fernandes
(3) Tito Cardoso e Cunha
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