10 agosto 2008

O homem.com medo de si próprio (6)

Pela frente temos o já clássico problema da neutralidade (ou não) da técnica, uma neutralidade que tanto pode ser entendível no sentido de que se a técnica é neutra então é possível impor-lhe valores morais, jurídicos e outros, como também naquela acepção de que se é neutra, então é neutra relativamente a todos os valores. Ora é da lucidez com que se analise e compreenda este problema da neutralidade que, segundo Bragança de Miranda, dependem as respostas à própria questão da técnica e que, a seu ver, serão tipicamente duas. “A primeira consiste em ‘regionalizá-la’ ou circunscrevê-la, fazendo dela um subsistema de um sistema mais geral, por exemplo, a ‘modernidade’ ou o ‘capitalismo’. A outra insiste na ideia de uma espécie de imperium da técnica que se constrói e revela na história do Ocidente. Evidentemente que no primeiro caso ela seria controlável, bastando controlar o ‘sistema’ que a integra, através da ética, por exemplo; no segundo caso, tudo se complica” [11]. E tudo se complica porque, ao escapar à instrumentalidade que a punha à disposição de um ‘uso’, a técnica, ela própria, coloca-se fora de todo e qualquer controlo, pondo desse modo em causa a possibilidade de uma decisão ou resposta ainda humanista. Colocado que está entre a garantia de salvação e o perigo da catástrofe, ao homem será, por certo, mais indicado e urgente partir da pior das hipóteses, a da catástrofe, no exercício de um pensamento e de uma acção que serão prudenciais precisamente por isso: por se operacionalizarem mesmo na ausência de uma formulação última e definitiva da verdadeira essência da técnica.

O que permanece ainda demasiado obscuro é a particular relação que o homem com ela estabelece através dos tempos e, em especial, no seio da cultura contemporânea, onde a técnica moderna parece desafiar para um constante questionamento ético e social. Aceitar este desafio implica, porém, responder a uma primeira questão: como foi possível chegar a este predomínio da técnica na cultura actual?

A substituição da força orgânica

Arnold Gehlen explica o crescente sucesso da técnica a partir da substituição da força orgânica pela anorgânica, o que teria vindo a alargar o seu campo de intervenção, autonomia e potencial de desenvolvimento. Lembra, por exemplo, que foi com a máquina a vapor e o motor de combustão alimentados pelas reservas de carvão armazenadas debaixo do solo, que a humanidade se tornou, finalmente, independente das fontes naturais de energia que crescem em ritmo anual. Até aí, ou seja, “enquanto a madeira era o principal material e o trabalho do animal domesticado a fonte mais importante de energia, havia uma limitação para o ritmo e crescimento da cultura material que, não sendo técnica, dependia do lento crescimento e do escasso escopo da reprodução orgânica” [12]. A partir do momento, porém, em que se tornou possível construir obras de engenharia hidráulica destinadas à produção de energia eléctrica e também com a descoberta do aproveitamento da energia atómica, deu-se o último passo “para a emancipação dos substractos orgânicos necessários à obtenção de energia” [13].

O facto da passagem da substituição do orgão para a total substituição do orgânico ser determinada “por uma legalidade espiritual um tanto misteriosa” [14], levou Gehlen a interrogar-se sobre o verdadeiro fundamento dessa substituição do orgânico por materiais e forças anorgânicas, a qual continua, aliás, a estar na base do desenvolvimento da técnica. Tal fundamento residirá no facto do domínio da natureza anorgânica ser muito mais acessível a um conhecimento metódico, racional e estritamente analítico, logo, também mais susceptível de prática experimental. O mesmo já não se pode dizer do domínio biológico e do domínio anímico que são incomparavelmente mais irracionais. Daí a tendência para os técnicos e os cientistas conceberem o mundo numa base positivista fáctica, pois as ciências e as técnicas de maior sucesso exercem uma certa irradiação sobre a nossa visão do mundo e, naturalmente, influenciam-na. É no entanto de assinalar, diz Gehlen, que este tipo de concepção do mundo só se tenha divulgado depois do séc. XVII, quando, como se sabe, já há meio milhão de anos que existe uma produção técnica. [cont.]
__________
[12] Gehlen, A., (s/d), A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Lisboa: Livros do Brasil, p. 18
[13]
idem
[14] ibidem, pp. 18-19


in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 17-19

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