01 julho 2004

Excertos de um livro não anunciado (190)

(...) Também a regra da justiça e a reciprocidade que lhe é inerente, fundadas no tão proclamado princípio de igualdade de tratamento perante a lei são, como nos lembra Perelman, a expressão de uma regra de justiça de natureza formal, segundo a qual “os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma” *. O recurso ao precedente e o costume não são mais do que aplicações dessa regra e correspondem à crença de que é razoável reagir da mesma forma que anteriormente, em situações análogas, se não tivermos razões suficientemente fortes para o lamentar. Uma forma de agir será então injusta se se traduzir por um comportamento diferente face a duas situações semelhantes. Perelman dá-nos como exemplo de utilização argumentativa desta regra de justiça, uma breve passagem de um sermão de Demóstenes: “Pretenderão eles, por acaso, que uma convenção, se contrária à nossa cidade, seja válida, recusando-se, no entanto, a reconhecê-la se lhe servir de garantia? É isso o que vos parece justo?” **. Estas palavras de Demóstenes confirmam como importante instrumento de persuasão, o argumento de reciprocidade, que consiste na assimilação de dois seres ou duas situações, com o objectivo de mostrar que os termos correlativos numa relação devem ser tratados da mesma forma. Sabendo-se que em lógica formal, os termos a e b, antecedente e consequente de uma relação R, podem ser invertidos sem inconveniente, desde que tal relação seja simétrica, tudo o que é necessário fazer no campo argumentativo é mostrar que entre esses dois seres ou duas situações, há uma simetria essencial. Provada esta, torna-se possível aplicar o princípio da igualdade de tratamento. A regra de ouro, não faças aos outros o que não queres que te façam a ti é talvez a mais famosa aplicação da regra de justiça a situações que se pretendem simétricas. (...)

* Perelman, C., (1993), O Império Retórico, Porto: Edições ASA, p.84
* Ibid., p.85