O problema da silepse
Bem me lembro que prometi esclarecer este meu comentário ao modo como Pacheco Pereira reagiu à eleição de Filipe Menezes. Se ainda não o fiz, foi porque resolvi dar algum tempo para ver até onde chegaria o seu anunciado “mau perder”. E devo dizer que valeu a pena.
O radar psicológico do Prof. Marcelo
Valeu a pena, em primeiro lugar, porque percebo agora que este "quase trágico” lamento não passou de uma reacção abrupta e impulsiva à vitória de Filipe Menezes. Não morrendo de amores pelo candidato eleito, é natural que a notícia da sua eleição por folgada margem não tenha sido fácil para o erudito comentador, como aqui tão oportunamente se sugeriu. Mais a mais se é corajoso e lúcido, mas, às vezes, impulsivo, conforme parece ter detectado o radar psicológico do Prof. Marcelo.
O “mau tempo” já lá vai?
Valeu a pena, em segundo lugar, porque parece que o "mau tempo" já lá vai. Isto é, depois daquele inicial exagero do “Pobre país, o nosso” (29.09.2007), seguido de uma provocadora série de posts com a bandeira do partido ao contrário, eis que Pacheco Pereira retoma a crítica serena (onde realmente é exímio), primeiro no programa televisivo “Quadratura do Círculo” (17.10.2007) – a ponto de Jorge Coelho estranhar a sua “meiguice” discursiva – e depois, numa série de intervenções públicas, com destaque para este seu artigo na "Sábado" (20.10.2007) no qual, para além de restituir à bandeira a sua dignidade icónica, retoma, sobretudo, o "quantum" de distanciamento a que a racionalidade crítica, por natureza, obriga - especialmente quando o crítico seja parte interveniente do fenómeno ou do movimento que avalia, como é o caso.
A inclinação político-militante
Ainda bem, porque raras são a preparação cultural e a capacidade analítica de Pacheco Pereira, que sinceramente admiro e com quem muito aprendo. Mas seria uma pena se o distinto comentador, enquanto tal, permanecesse "amarrado" à sua (aliás, legítima) inclinação político-militante. Dito isto, avanço para a justificação do meu já aludido post.
A racionalização do falhanço eleitoral
E começo pela afirmação que nele fiz: “Filipe Menezes ganhou apenas porque foi o candidato mais votado”. Primeira questão: a minha afirmação é verdadeira? Claro que sim. Aliás, das quatro afirmações presentes no meu post, esta é a única comprovadamente verdadeira. Daí a chamada a título como "verdadeira razão". As restantes, mete-se pelos olhos dentro que não passam de suposições sobre outras suposições, porventura na ânsia de "racionalizar" agora o falhanço eleitoral que se foi incapaz de prever. E há que dizer que, quando tais suposições são assumidas nos termos em que o fez Pacheco Pereira, ou seja, como afirmações em vez de meras hipóteses, conferem ao raciocínio um inequívoco recorte falacioso.
Da pretensão informativa ao sentido retórico
Dir-se-á, e disse-se mesmo, que a minha afirmação, embora verdadeira, é redundante. Compreendo a crítica, face à economia textual do comentário que produzi, mas já não à luz da explicação que aqui fica: é tão evidente que Menezes ganhou por ter obtido o maior número de votos, que não faria o menor sentido afirmá-lo com pretensão informativa. Logo, a aparente redundância não o é, de facto, pois a afirmação de que “Filipe Menezes ganhou apenas porque foi o candidato mais votado”, no contexto (e até no co-texto) em que surge, não aponta para qualquer relação de identidade entre dois termos (ou frases), ou seja, não é simplesmente mais do mesmo.
A perda informativa da figuratividade
Concerteza que a afirmação “ganhar eleições é obter o maior número de votos” tem a aparência tautológica que podemos surpreender em muitas outras, tais como “um triângulo tem três ângulos”, “a relva verde é verde”, etc. Mas como lembra Perelman, o grande mestre da argumentação, já “a tautologia evidente e voluntária, como nas expressões do tipo ‘um tostão é um tostão’, ‘crianças são crianças’, deverá ser considerada uma figura” [cuja interpretação] "requer um mínimo de boa vontade por parte do ouvinte" (ou leitor). E porquê? Porque apela para um sentido a que não chega (nem pode chegar) a pura literalidade. Maior atenção e boa vontade do leitor, é assim como que o preço a pagar pelo facto do eventual ganho retórico da figura (mais sentido, mais persuasão) ocorrer sempre à custa de alguma perda informativa (maior ambiguidade).
A silepse
Mas se não tive qualquer intenção informativa ao afirmar que Menezes “ganhou apenas porque foi o candidato mais votado” que intenção tive afinal? O que mais especificamente quis dizer? Ora aí é que está: escrevendo o que escrevi, quis dizer algo mais do que disse, quis sobretudo, dizer o que não disse, deixando ao leitor a liberdade de fechar um (ou mais) dos múltiplos sentidos que a implícita silepse consentia. Por isso não fui além de marcar ironicamente a minha discordância quanto às três esfarrapadas hipóteses (disfarçadas de afirmações) com que Pacheco Pereira procurou relativizar o êxito de Menezes, mais do que explicá-lo. E por aí me ficaria pois não se pode exigir a ninguém que seja sempre inteiramente feliz no que pensa ou no que escreve. Mas uma vez questionado, devo esclarecer, no mínimo, o que a minha afirmação, supostamente redundante, podia muito bem querer dizer.
Hipóteses versus razões
Poderia querer dizer, desde logo, que é perfeitamente natural que depois de uma eleição se especule sobre a direcção e o sentido de voto desta ou daquela classe de eleitores, ou sobre o que os terá levado a votar o candidato A em vez do candidato B, mas sem nunca perder de vista o carácter hipotético da respectiva especulação. O que tem como consequência prática mais evidente, que não se possa afirmar uma série de hipóteses como se fossem verdadeiras razões, que foi o que fez o nosso comentador.
A isenção analítica
Poderia também querer dizer que se Pacheco Pereira pretendia realmente analisar com alguma isenção as razões que tinham levado Menezes à vitória, não deveria ter-se ficado por apontar os defeitos do partido e do candidato vencedor. Assinalaria também as qualidades de um e de outro, que sempre terão dado uma ajudinha à vitória - pois não é verosímil que um candidato ganhe só com defeitos - e sobretudo, analisaria igualmente as razões que terão levado Marques Mendes à derrota, pois não é igualmente verosímel que um candidato perca só com virtudes.
O desafio do comentador: dizer porque pensa o que pensa
Poderia ainda querer dizer, por exemplo, que o comentador não pode esperar que o levem a sério quando as três primeiras "razões" que adianta no seu blogue para explicar porque ganhou Menezes são porque “assumiu o papel de sindicalista do aparelho do partido”, porque o PSD “tem ‘pressa’ de chegar ao poder” e “um dos principais eleitores de Menezes foi a acedia” - tudo isto sem uma justificação, sem um argumento. Sim, porque por mais qualificado que seja um comentador, como sucede com Pacheco, não lhe basta dizer o que pensa, tem, sobretudo, que dizer porque pensa como pensa. De contrário, as “suas” razões sempre poderão ser confundidas com meros desabafos ou palpites ou, ainda pior, como encapotada forma de intervenção político-partidária.
Como explicar a derrota do (nosso) candidato?
Por último, poderia querer dizer que não se contesta (quem o ousaria?) que ganhar eleições tenha razões múltiplas. O problema reside na dificuldade que há em descobrir essas razões. E não sei como se pode superar esta dificuldade, escassas horas após o escrutínio eleitoral. O que eu sei é que não basta atirar ao ar as primeiras hipóteses que nos vêm à cabeça, principalmente quando se trate de encontrar explicações para a vitória de quem, tendo derrotado o nosso candidato, de certa forma, nos derrotou a nós, também.
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