23 julho 2008

O homem.com medo de si próprio (4)

Será também essa a via que irei seguir aqui, onde toda a referência à técnica deve ser entendida como apontando para “a disposição cientificamente racionalizada sobre processos objectivados (...) [onde] a investigação e a técnica se encontram com a economia e a administração e são por elas retro-alimentadas” [4]. É sobre esta técnica que urge reflectir, para conhecer o seu grau de perigosidade ou de infracção ética e, se preciso for, fixar-lhe imperativos limites. O que abre, desde logo, para a primeira das interrogações: de que modo está o pensamento técnico a transformar o ser humano?

O irresistível domínio da técnica


Que a técnica é tão antiga como a humanidade já ninguém duvida, pois é justamente pelos vestígios da utilização de instrumentos de trabalho que se pode concluir se certos achados arqueológicos se relacionam ou não com o homem. Não obstante, a sua essência permanece algo misteriosa ou pelo menos, nunca completamente desvelada e estabelecida. Uma boa introdução ao problema pode perfeitamente passar pela distinção que Francis Ponge faz entre aparelho e utensílio: “O aparelho é um instrumento que serve para as artes mecânicas. O utensílio é toda a espécie de pequeno móvel que serve para a casa, e principalmente, para a cozinha”
[5]. A diferença fundamental será que, como bem assinala Bragança de Miranda, “o primeiro dispensa o humano e o segundo relaciona-se com este através de ‘uma perfeita conveniência com o carácter do objecto’. Daí que se possa segurar na mão, sem pesar de mais. Os outros dispensam a mão e o gesto, se não o substituem radicalmente. (...) Deveríamos dizer que há cada vez mais máquinas e menos utensílios? É preciso ir mais longe, e verificar que mesmo as máquinas estão a desaparecer à medida que os automatismos de repetição se vão instalando um pouco por todo o lado” [6]. Ou seja, enquanto os utensílios (e o seu uso) se mantêm sempre na mais estrita dependência da vontade humana, o mesmo já não sucederá com os aparelhos ou máquinas e posteriores mecanismos de repetição automática que gradualmente se autonomizam e assim põem em cheque o domínio que o homem sobre eles gostaria de continuar a exercer ou, o que é pior, pode estar erroneamente convencido de que ainda exerce.

Uma outra maneira, aliás deveras ilustrativa, de figurar a questão da essência, leva-nos à parábola do aprendiz de feiticeiro por Bragança de Miranda assim invocada:

“um feiticeiro tinha um aprendiz, que casualmente ouviu o mestre usar as palavras mágicas para pôr as coisas a funcionar, tendo-as decorado. Um dia, o mestre teve de sair e deu-lhe ordem para cortar a madeira, varrer a casa, tirar água do poço com um balde, afirmando querer o trabalho pronto quando viesse. O aprendiz, que tinha aprendido a frase mágica para pôr as coisas a funcionar, disse a palavra certa e a vassoura toca de varrer, o machado de partir a lenha e o balde de ir buscar água ao poço. Ora, sucede que, depois de partida a madeira, o machado continua a partir tudo, a vassoura começa a destruir tudo e o balde continua a trazer água sem parar para dentro de casa. Em suma, a própria casa que abrigava mestre e aprendiz começa a ser destruída. O pobre do aprendiz fica numa aflição imensa, sem saber o que fazer, pois não conhecia a palavra mágica para tudo fazer parar. No cúmulo do seu desespero, eis que surge o mestre que diz a palavra necessária, retornando tudo à ordem”
[7].

Ora o que Bragança de Miranda põe em causa é precisamente este final feliz da parábola que não estará assegurado (ainda?) na técnica contemporânea, nomeadamente, porque, relativamente a esta última, não dispomos de um “mestre” análogo ao dessa parábola que nos dê a mesma garantia de controlo do respectivo processo técnico. A parábola corresponde por isso a uma visão da técnica como “algo que foi produzido pelo homem e que se afastou dele, mais ainda, que se voltou contra ele”
[8] mas que pressupõe a sua possibilidade racional de, em última instância, corrigir a direcção do desenvolvimento técnico, recolocando-o ao serviço dos seus interesses ou meros caprichos. E é justamente aqui que a parábola nos abandona (ou melhor, que deve ser abandonada) por nos remeter para uma desordem apenas transitória e seguida do tal final feliz que de modo algum está assegurado na realidade. Pelo contrário, é a crença no controlo humano da técnica que se vai desvanecendo, ou que, pelo menos, sai muito ameaçada, não apenas pela desrazão com que a técnica tem sido usada nas mais bárbaras agressões do homem contra o homem e contra o planeta, como também pelo seu cada vez maior e mais sofisticado grau de autónoma manifestação. [cont.]
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[4] Habermas, J., (1997), TÉCNICA E CIÊNCIA COMO “IDEOLOGIA”, Lisboa: Edições 70, p. 101
[5] cit. in Miranda, J. B., (1999), “Fim da Mediação” in Miranda, J. B. (org), (1999), REAL VS. VIRTUAL, Lisboa: Edição Cosmos, p. 293
[6] Miranda, J. B. (1999), “Fim da Mediação”, op. cit, idem
[7] Miranda, J.B., (2002), TEORIA DA CULTURA, Lisboa: Edições Século XXI, pp. 37-38
[8] idem

in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 15-16

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