O homem.com medo de si próprio (5)
Aos potenciais perigos da técnica, devidos à margem de imprevisibilidade que a acompanha, aos erros e às más decisões, há que juntar, portanto, este perigo maior traduzido agora pela possibilidade da própria técnica se vir a apropriar do centro de decisão. Será este último perigo completamente utópico num tempo em que a clonagem e os cyborgs já estão na ordem do dia? Ainda que não se acolha, por ora, a ideia de que a técnica escapa a qualquer determinação antropológica, uma coisa é certa: essa possibilidade mantém-se de pé. Por um lado, porque ainda não foi inequivocamente negada, por outro, porque os progressos já conseguidos em áreas como a engenharia genética e a nanotecnologia, passando pelos implantes, transplantes e outras intervenções de carácter acentuadamente protésico, são hoje potenciadores da futura reconfiguração de um humano cada vez mais tecnológico. Tudo dependerá, assim, de se vir ou não a ultrapassar aquela situação-limite a partir da qual o homem passaria de dominador a dominado, feito escravo da técnica que ele próprio concebeu.
Heidegger, como se sabe, não se afasta muito, ou mesmo nada, deste catastrófico cenário, ao catalogar como importante manifestação da técnica o “carácter irresistível do seu domínio ilimitado” [9] . Tal equivale a reconhecer na técnica uma exigência cujo cumprimento o homem não pode impedir e ainda menos pode ver e dominar. Nestes termos, os gritos de alarme que frequentemente são lançados no sentido de que o percurso da técnica deve ser dominado, são vistos por Heidegger não só como testemunho da apreensão que se espalha mas também como fruto da total ignorância dessa incontornável exigência da técnica. E se, entretanto, tais gritos de alarme se calam, isso não quererá dizer “que o homem controla a técnica. O silêncio traduz muito mais o facto de que face à reivindicação do poder pela técnica o homem se vê reduzido à perplexidade e à impotência, quer dizer, à necessidade de se conformar, pura e simplesmente – explícita ou implicitamente -, ao carácter irresistível da dominação tecnológica” [10].
Em crise fica, portanto, a concepção antropológica-instrumentalista da técnica onde esta surge tanto como coisa humana (inventada, dirigida e estabelecida pelo homem e para o homem), como instrumento (aparelho, utensílio ou meio que o homem manipula em função da sua utilidade). Porque embora nos proporcione ainda uma adequada visão de conjunto do desenvolvimento histórico da técnica, já não nos permite, contudo, perceber o carácter singular de que a técnica se reveste na actualidade, muito menos concorre para o seu desvelamento ou desocultação. [cont.]
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[9] Heidegger, M., (1995), LÍNGUA DE TRADIÇÃO E LÍNGUA TÉCNICA, Lisboa: Vega, p. 27
[10] ibidem, p. 28
in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 16-17
Heidegger, como se sabe, não se afasta muito, ou mesmo nada, deste catastrófico cenário, ao catalogar como importante manifestação da técnica o “carácter irresistível do seu domínio ilimitado” [9] . Tal equivale a reconhecer na técnica uma exigência cujo cumprimento o homem não pode impedir e ainda menos pode ver e dominar. Nestes termos, os gritos de alarme que frequentemente são lançados no sentido de que o percurso da técnica deve ser dominado, são vistos por Heidegger não só como testemunho da apreensão que se espalha mas também como fruto da total ignorância dessa incontornável exigência da técnica. E se, entretanto, tais gritos de alarme se calam, isso não quererá dizer “que o homem controla a técnica. O silêncio traduz muito mais o facto de que face à reivindicação do poder pela técnica o homem se vê reduzido à perplexidade e à impotência, quer dizer, à necessidade de se conformar, pura e simplesmente – explícita ou implicitamente -, ao carácter irresistível da dominação tecnológica” [10].
Em crise fica, portanto, a concepção antropológica-instrumentalista da técnica onde esta surge tanto como coisa humana (inventada, dirigida e estabelecida pelo homem e para o homem), como instrumento (aparelho, utensílio ou meio que o homem manipula em função da sua utilidade). Porque embora nos proporcione ainda uma adequada visão de conjunto do desenvolvimento histórico da técnica, já não nos permite, contudo, perceber o carácter singular de que a técnica se reveste na actualidade, muito menos concorre para o seu desvelamento ou desocultação. [cont.]
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[9] Heidegger, M., (1995), LÍNGUA DE TRADIÇÃO E LÍNGUA TÉCNICA, Lisboa: Vega, p. 27
[10] ibidem, p. 28
in Américo de Sousa (2004), O homem com medo de si próprio, Porto: Estratégias Criativas, pp. 16-17
Etiquetas: A retórica da técnica
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