25 novembro 2004

Excertos de um livro não anunciado (211)

Qualquer que seja a divisão do discurso escolhida, subsistirá sempre a questão de se determinar, mesmo no interior de cada uma das partes, qual a ordem pela qual se devem apresentar os diversos argumentos. Tomando por base a força de cada argumento, Perelman analisa as três ordens que têm sido preconizadas: a ordem da força crescente, a ordem da força decrescente e a ordem nestoriana, em que se começa e acaba com argumentos fortes, deixando os restantes para o meio da argumentação. Qual delas será a mais eficaz? Parece que as três apresentam vantagens e inconvenientes. Na ordem crescente, o facto de se começar pelos argumentos mais fracos pode instalar uma certa letargia no auditório e, principalmente, induzir neste uma imagem menos favorável do orador, o que fatalmente irá esmorecer o seu prestígio e a atenção que lhe é dispensada. Na ordem decrescente, ao terminar o discurso com os argumentos mais fracos, o orador deixa no auditório uma impressão igualmente fraca, que, por ser a última, pode muito bem ser a única de que os auditores se vão lembrar. A ordem nestoriana, não apresenta nenhum desses dois inconvenientes, na medida em que começa e acaba com argumentos fortes, mas tem contra si o facto de pressupor a força dos argumentos como uma grandeza imutável, isto é, não leva em linha de conta que a força de um argumento varia sempre em função do auditório e que este, por sua vez, também muda com o desenrolar do próprio discurso. É o que Perelman pretende mostrar quando afirma: “(...) se a argumentação do adversário impressionou o auditório, interessa refutá-la de início, em aplanar, por assim dizer, o terreno, antes de se apresentar os próprios argumentos. Ao invés, quando se fala em primeiro lugar, a refutação dos eventuais argumentos do adversário nunca precederá a prova da tese que se defende. Haverá muitas vezes, aliás, interesse em não as evocar para não dar aos argumentos do adversário um peso e uma presença que a sua evocação antecipada acaba, quase sempre por reforçar” (*). O que é importante é não perder de vista que a eficácia do discurso muda com o seu próprio desenrolar e que por isso mesmo, cada argumento deve surgir no momento em que possa exercer mais efeito e mostrar-se devidamente ajustado ao modo como os respectivos factos vão sendo interpretados. Se a finalidade do discurso é persuadir o auditório, então a ordem dos argumentos não pode deixar de ser constantemente adaptada a tal finalidade.

(*) Perelman, C., 1993, O Império Retórico, Porto: Edições ASA, p. 161



22 novembro 2004

Comparação de género: solução à vista

Há alguns dias atrás, mais exactamente na edição do "Púbico" da passada sexta-feira (a), deparei com o seguinte título:

"MAIS MULHERES COM ESCOLARIDADE SUPERIOR À DOS MARIDOS"

E a respectiva notícia confirmava. Pelo menos no ano passado, 55% dos casais apresentavam níveis de formação idênticos, em 13% era o homem quem tinha estudado até mais tarde e, por último, em 32% dos casamentos a mulher tinha níveis de escolaridade mais elevados que os do marido.

Qual será então a tendência para o futuro? Por mim acredito sinceramente que os homens possam vir a recuperar o equilíbrio nesta comparação de género. Principalmente porque não precisarão de estudar mais. Basta que casem menos...


(a) Corrigido em 23.11.2004


18 novembro 2004

Excertos de um livro não anunciado (210)

Também no discurso epidíctico, quer esteja em causa um elogio ou uma censura, a narração só se tornará indispensável se tais factos forem ainda desconhecidos do público a que o discurso se dirige. Mas a opção ou não pela narração dos factos pode depender também de outras razões. No caso do processo judicial, por exemplo, enquanto o acusador recorrerá a uma narração pormenorizada que dá aos factos uma presença tal que faz com que o juiz não mais os perca de vista, o defensor, em princípio, procurará opor-se à narração do adversário, detendo-se especialmente sobre o que o justifica ou desculpa. Não se pode por isso estabelecer à partida uma divisão do discurso demasiado apertada ou muito rígida, já que nem todos os discursos têm a mesma estrutura. Esta, dependerá sempre da concreta situação retórica a que o discurso se aplica, particularmente do seu objecto, do auditório e do tempo de que se dispõe.

14 novembro 2004

Palavras ditas

As palavras, depois de ditas, dizem sempre outra coisa. Submissas no momento da escolha, deixam-se moldar ao capricho de quem as toma. Mas logo que pronunciadas, afastam-se para sempre. Não são mais as nossas palavras. Passam a ser as palavras dos outros, a quem se entregam sem qualquer hesitação ou pudor. Abrem-se ao mundo e à vida, recebem diferentes usos e interpretações, ganham novos sentidos. As palavras são livres e não se deixam aprisionar. Não admira, por isso, que só digam a mesma coisa uma vez.


( inspirado no post "Visita" com que Carlos Vaz Marques voltou hoje ao seu blogue e onde nos dá conta de que as palavras que escreveu há meses atrás, continuam lá...mas "já não dizem a mesma coisa")


Excertos de um livro não anunciado (209)

No que respeita ao orador e ao adversário, Aristóteles diz que, consoante os casos, o exórdio visa fazer desaparecer um preconceito desfavorável ao orador ou criar um preconceito desfavorável ao adversário. No primeiro caso, é indispensável que o orador comece por aí, pois não se escuta de bom grado alguém que se considera hostil ou desprezível; no segundo caso, ou seja, quando se trata de enfraquecer o adversário, “o orador deve colocar os seus argumentos no fim do discurso, de modo a que os juizes se lembrem claramente da peroração” (*). O lugar de um argumento deverá pois ser determinado em função da sua finalidade e do meio mais eficaz de a alcançar. Se a narração dos factos é indispensável no processo judicial, já não o é muita vezes num discurso deliberativo, quando os ditos factos são perfeitamente conhecidos do auditório. Com efeito, seria totalmente contra-indicado proceder a uma exaustiva e enfadonha descrição de situações que o auditório já domina, quando se reconhece que o interesse e a atenção dos auditores é essencial para se obter a sua adesão às teses do orador.

* Perelman, C.,(1993), O Império Retórico, Porto: Edições ASA, p. 160

12 novembro 2004

Também acho

A propósito das declarações dos treinadores de futebol no final dos jogos:

De Trapattoni a Fernandez, de Vítor Oliveira a Pontes, de Couceiro a Jesualdo, há desportivismo e mais educação do que no passado recente

Joaquim Letria in "Visão" n.º 610

Polémica sobre o jornalismo desportivo

É notório que o provedor do JN e o editor de desporto do mesmo jornal têm um entendimento muito diferente do que deve ser o jornalismo desportivo. Se o primeiro critica o facto do jornal dizer num dia que a "bola tinha entrado e no outro dia [que] não tinha entrado", o segundo chega ao ponto de afirmar que "o JN não tinha nada que explicar porque é que isso aconteceu". E adianta as suas razões: é que "Nenhum jornalista vincula o jornal quando escreve uma crónica de futebol" e, além disso, "uma crónica de futebol não é uma reportagem, nem uma notícia". Ao que o provedor contrapõe que "A crónica jornalística é um género demasiadamente rico para ser etiquetado como mera opinião" .

O provedor aproveita a polémica para promover uma reflexão sobre o "jornalismo centrado no fenómeno desportivo" e convida ao debate sobre um conjunto de importantes questões (umas mais gerais, outras mais específicas), entre as quais se situa a dificuldade em determinar a que género jornalístico reporta uma “crónica de futebol”: reportagem? notícia? artigo de opinião? Já conhecemos a resposta do editor: a crónica de futebol não passa de um exercício jornalístico de opinião. E tanto assim é que, diz, o jornal (e já agora, o jornalista) até pode dar-se ao luxo de, sobre o mesmo facto, dizer hoje uma coisa e no dia seguinte precisamente o contrário, sem que disso tenha que dar qualquer explicação ao leitor.

Ora é precisamente a justificação dada pelo editor que me parece bem mais condenável do que qualquer eventual falha editorial. E isto, porque assenta no pressuposto de que se a crónica jornalística recair no domínio da opinião, já o seu autor estará a salvo de quaisquer críticas, quanto à veracidade do que escreveu. O que é absurdo. Talvez, por isso, que o provedor pudesse ter ido mais longe do que foi, quando se quedou por uma recusa de que a crónica jornalística sobre futebol se circunscreva à mera opinião. Porque tanto quanto me apercebo, do que se trata não é de encontrar o registo taxionómico mais adequado para a crónica jornalística mas sim de averiguar, qualquer que seja o género escolhido (notícia, reportagem ou artigo de opinião), se é admissível que o jornalista (ou o jornal) relate como certo o que é duvidoso e que, uma vez detectado o erro, não o assuma perante o leitor que nele confiou. Que foi o que agora aconteceu e motivou o oportuno reparo do provedor. Um reparo, aliás, tão comedido que até correu o risco de ser mal interpretado, pois quando se afirma que a crónica de futebol “não dispensa o esforço do rigor e do equilíbrio” para melhor sublinhar que não se trata de mera opinião, sempre se pode deixar no ar a falsa ideia de que se a crónica fosse simplesmente “opinião” já seria mais tolerável prescindir de um tal grau de exigência. Uma falsa ideia sobre a qual já escrevi:

[A dupla equiparação da subjectividade à opinião e da objectividade à notícia] funda-se na equívoca crença de que a notícia se situa, por assim dizer, no reino da objectividade jornalística enquanto a opinião - seja a do editorial, do artigo ou do comentário – pode dar-se ao luxo de ser menos rigorosa, precisamente porque emerge da subjectividade do respectivo articulista e representa apenas a sua opinião. Ao que, se poderia ainda acrescentar, o fundamento da notícia é, regra geral, verificável e o da opinião, não. Pensamos que não se justifica tal entendimento. Por um lado porque, como refere Mar de Fontcuberta, embora haja fundamentalmente dois grandes tipos de géneros jornalísticos - os que servem para dar a conhecer os factos e os que dão a conhecer as ideias ou opiniões (*) - a verdade é que frequentemente se misturam numa mesma peça, sendo difícil identificá-los. Basta ver o que ocorre no chamado jornalismo de interpretação onde o leitor encontra os juízos de valor (comentário) ao lado da narração dos factos (relato), quando não mesmo, no interior da própria narração (**). Depois, porque sobre o jornalista recai sempre a mesma exigência ética de respeitar a verdade, quer quando relata um facto quer quando o comenta. E se todos os factos requerem interpretação, não é menos verdade que esta pode e deve representar uma permanente tentativa de passar da subjectividade à objectividade. O que a subjectividade não pode é continuar a ser vista como albergue de erros grosseiros, manipulações evidentes, atropelos lógicos ou pura discricionaridade, nem servir de desculpa para opiniões sem a mínima justificação racional. Porque sendo embora condição do próprio conhecimento, só objectivamente se pode afirmar sempre que se apresente como portadora de alguma razão.

* Fontcuberta, M., (1999), A notícia, Lisboa: Editorial Notícias, p. 80
** ibidem, p. 81



in "O ESTATUTO DA SUBJECTIVIDADE NO CAMPO JORNALÍSTICO"
(Comunicação ao I Congresso Luso-Brasileiro de Estudos Jornalísticos, 10 Abril 2003)



09 novembro 2004

Excertos de um livro não anunciado (208)

A ordem dos argumentos no discurso. Desde sempre foi reconhecida a necessidade de se ordenar as matérias a tratar a fim de mais facilmente se obter a adesão do auditório. Uma primeira forma de ordenação consiste em proceder à divisão do discurso em partes, segundo a específica função que cada uma delas nele exerce. Compreende-se assim que o discurso retórico tenha chegado a ser dividido em cinco partes: exórdio, narração, prova, refutação e recapitulação. Aristóteles, porém, fazendo notar que uma divisão tão pormenorizada seria válida apenas para um ou outro género oratório mas nunca para todos, considera que há somente duas partes que são indispensáveis: o enunciado da tese e os meios de a provar. Perelman, que parece acolher esta divisão de Aristóteles, recorre uma vez mais ao confronto com a demonstração para justificar a importância que se deve atribuir à ordenação dos argumentos. “Notemos, desde já, que numa demonstração puramente formal a ordem não tem importância; trata-se, com efeito, graças a uma inferência correcta, de transferir para os teoremas o valor da verdade, atribuída por hipótese, aos axiomas. Ao invés, quando se trata de argumentar, tendo em vista obter a adesão de um auditório, a ordem é importante. Com efeito, a ordem de apresentação dos argumentos modifica as condições da sua aceitação” (*). Mas o facto de se olhar a divisão do discurso em duas partes verdadeiramente essenciais, não significa que a primeira das divisões aqui citada – exórdio, narração, prova, refutação, recapitulação – se revele totalmente inútil em termos de ordenação dos argumentos, mas tão só, que não é susceptível de uma aplicação taxativa a todos os géneros oratórios. O exórdio, por exemplo, ainda que em princípio o seu objecto seja estranho à discussão propriamente dita, tem uma finalidade funcional muito precisa: suscitar a benevolência e o interesse do auditório e criar neste uma predisposição favorável ao respectivo orador. Simplesmente, o exórdio pode ser suprimido, por exemplo, se o orador já é bem conhecido do seu auditório, ou, como é cada vez mais vulgar, quando a sua apresentação seja confiada a outra pessoa, que poderá ser até o próprio presidente da sessão. De qualquer modo, sempre que tenha lugar, o exórdio incidirá sobre o orador, o auditório, o tema ou sobre o adversário.

(*) Perelman, C., (1993), O Império Retórico, Porto: Edições ASA, p. 159



03 novembro 2004

Excertos de um livro não anunciado (207)

Em situações pontuais pode até ser prudente restringir voluntariamente o alcance da argumentação, ficando aquém das conclusões que delas se poderiam retirar, para melhor reforçar no auditório a predisposição à confiança. São porém conhecidas diversas técnicas específicas para favorecer a aceitação dos argumentos, tais como elogiar o adversário, realçando a sua habilidade ou talento como orador, o que tenderá a diminuir na mesma proporção a força dos seus próprios argumentos, pois quanto mais se enaltece as suas qualidades oratórias, mais se insinua que por trás da aparente eficácia do seu discurso se esconde uma insuficiente argumentação; preferir o argumento original por ter, regra geral, mais força que o argumento já conhecido; pegar no argumento do adversário para o voltar contra ele, já que este, depois de o ter utilizado e reconhecido a sua força, fica sem qualquer possibilidade de o rejeitar, sem cair no descrédito geral; fazer uma convergência de argumentos, para obter o mesmo resultado através de métodos diferentes ou então, mostrar como vários testemunhos, independentes uns dos outros, coincidem no essencial e por último, perante a dúvida sobre qual o argumento que será mais eficaz, recorrer a várias argumentações, complementares ou até incompatíveis, seja uma segunda argumentação que vem apoiar e reforçar a primeira, seja a chamada dupla defesa, muito usada nos tribunais, quando, por exemplo, o advogado de defesa começa por sustentar que o facto supostamente ilícito não ocorreu, mas logo em seguida, afirma que, ainda que tivesse ocorrido, tal facto não configuraria qualquer ilicitude. Mas em última análise forçoso é concluir que tanto a determinação da amplitude da argumentação como a selecção das técnicas de apresentação que visem reforçar a persuasividade dos respectivos argumentos, devem obedecer às particulares circunstâncias concretas de cada situação argumentativa.

01 novembro 2004

Santa paciência

No Congresso Internacional para a Nova Evangelização e em plena conferência plenária realizada na Notre Dame de Paris, o conhecido economista João César das Neves afirmou que o mundo não ama a Igreja Católica "por causa dos apelos que esta faz à humildade e à obediência" (a).

Não sei se o mundo ama ou não ama a Igreja Católica. Mas compreendo que seja mais fácil criticar o "mundo" do que criticar a Igreja. Só que, em assunto tão sério, como o da convicção religiosa, parece "pouco católico" tentar convencer ou persuadir à margem de toda a objectividade ou bem fundado daquilo que se afirma. Santa paciência: quem no seu perfeito juizo repeliria fosse que religião fosse pelo facto da mesma apelar à humildade e à obediência?


(a) in Publico, 30 de Outubro 2004