Com a pujança retórica que lhe é reconhecida,
Manuel Maria Carrilho assinava na passada terça-feira, no Público, um artigo sobre a eleição do próximo secretário-geral do PS, onde começava por frisar que tal eleição deve servir "não para estender uma passadeira vermelha aos pés da ambição deste ou daquele militante por este ou aquele cargo" mas sim "para que o partido escolha alguém com capacidade para o servir em todas as circunstâncias". Logo aqui percebe-se a "indirecta" da "ambição pessoal" que, seguramente não é dirigida para Manuel Alegre, o seu candidato. Logo aqui nos podemos interrogar, igualmente, sobre a pertinência de tal insinuação quer no plano da racionalidade argumentativa quer no que se prende com a indispensável ética da discutibilidade. É que, para além do mais, há-de reconhecer-se que, do facto de um candidato ter ambição pessoal por determinado cargo, não se segue que seja incapaz de o exercer. Inclino-me mesmo a admitir que quem tenha como meta pessoal vir a ser secretário-geral de um partido, terá, regra geral, a inerente ambição ou propósito de fazer um bom mandato, sabendo-se, como se sabe, que se trata hoje de um lugar permanentemente sujeito ao escrutínio mediático, à implacável apreciação dos cidadãos e, cada vez mais, também, à cobiça dos seus pares. Não se queira, por isso, fazer passar por defeito o que, num homem de acção, mais parece virtude: ter ambição pessoal.
Seria realmente desejável, para não dizer exigível, que a campanha em curso para eleição do futuro secretário-geral do PS, se traduzisse numa exemplar afirmação de humanismo pluralista e democrático, com a troca de ideias e a avaliação de projectos dos diferentes candidatos a decorrerem num clima de grande abertura, de tolerância e, acima de tudo, sem ataques pessoais. Mas perante o “reality show” a que se tem assistido, está visto que seria pedir de mais. Os protagonistas das diferentes candidaturas "engalfinham-se" numa tão absorvente campanha de mútuas desqualificações públicas que mais parecem actores pertencentes a um qualquer grupo de teatro subsidiado pelo governo para distrair e afastar a atenção das suas decisões mais polémicas ou até para esconder da opinião pública erros ou insucessos na sua condução política. Assim, "abençoado PS que nos proporcionais tão imerecido descanso", poderia muito bem ser a oração diária dos actuais governantes.
Foi, pois, com natural agrado que, ainda na parte inicial do artigo "político-partidário" a que aqui me refiro, deparei com um Carrilho exemplarmente pedagógico, a preconizar que o debate entre os candidatos e os seus projectos "deve ser tão frontal como fraterno, tão exigente como generoso". Aqui está o apelo que faltava para serenar os ânimos mais destemperados em cada uma das candidaturas – foi o que imediatamente disse de mim para mim. Fiquei tão curioso que a leitura de todo o artigo tornou-se obrigatória e até urgente. É que dos quatro atributos preconizados pelo autor do artigo – frontalidade e exigência, fraternidade e generosidade – já podía fazer uma ideia dos dois primeiros, que há muito entraram nesta campanha eleitoral partidária (veja-se o rigor das trocas de acusações). Mas quanto aos restantes, era caso para perguntar: em que tipo de fraternidade e generosidade estaria a pensar Manuel Maria Carrilho? Dúvida efémera, a minha, como adiante se verá.
Precipitei-me então sobre o texto integral do artigo à procura de exemplos práticos dessa tão preconizada fraternidade e generosidade. Porque, tendo em conta que Carrilho é, por sinal, destacado apoiante de uma das candidaturas, nenhum exemplo poderia ser mais fiel ao seu pensamento do que aquele que decorre da sua própria prática, no caso, do seu discurso. E fiquei esclarecido. O mínimo que se poderá dizer é que a fraternidade a que apela Carrilho é, afinal, uma fraternidade... minimalista, tão minimalista que lhe permite ainda classificar como
deplorável a mera recusa do seu companheiro José Sócrates em fazer debates a dois com os outros candidatos.
Se Carrilho não concorda ou não aceita essa recusa deveria vir a público dizer isso mesmo, que
discorda da recusa de Sócrates ou que a acha até, por exemplo, democraticamente
inaceitável. Em qualquer caso, sempre adiantando as razões da sua discordância, coisa que não faz neste artigo, apesar da sua evidente intenção persuasiva. E querer persuadir sem avançar com razões é sinónimo de
retórica negra (manipuladora), como bem assinala o seu amigo Michel Meyer. Estamos, pois, perante uma estranha “fraternidade” que leva um companheiro a denunciar publicamente a decisão de outro companheiro e a rotular essa decisão com o termo que lhe terá parecido de todos o mais “generoso”:
deplorável.
É, por certo, essa mesma estranha “fraternidade” que leva Carrilho a apontar os “problemas que a candidatura de José Sócrates tem com a verdade”. Mas o que é que isto quer dizer? Será algo muito diferente de chamar mentiroso ao respectivo candidato? O autor do artigo dá uma ajudinha na resposta quando abandona os eufemismos e passa a acusar a referida candidatura de “iludir a duplicidade e o calculismo da sua longa e quase secreta preparação”, “negar o ilegítimo aparelhismo da sua organização”, “disfarçar o comodismo das suas propostas”. E, para que nenhuma dúvida fique a atormentar o espírito do seu leitor, Carrilho remata com a mais “fraterna” de todas as suas afirmações sobre o seu companheiro de partido:
“seria grave que o PS pudesse um dia ser conduzido por alguém que anda por aí com um currículo em parte surripiado, em parte escondido!”
Li e não acreditei. Seria grave? Currículo em parte surripiado? Com tiradas destas... nem a retórica nos pode salvar. Mas convenhamos que se alguma coisa foi surripiada talvez o tenha sido a própria fraternidade, aquele verdadeiro sentimento amigo e leal, que nem o mais voraz apetite político teria conseguido destruir.