31 outubro 2004

Bem perguntado

A pergunta é se os dirigentes de formação "profissional" partidária e pensamento único, que vêem a política como relações públicas, gestão e televisão, perfeitamente adaptáveis ao interregno de 1991-2001 e a um mundo sem trágico, sem conflitos, sem decisões, sem política, servirão para o tempo e as escolhas que vêm aí? Se a linguagem "soft", da reconciliação permanente dos opostos, por uma retórica abrangente e sem substância, serve perante a erupção brutal do macroterrorismo suicida, da fragmentação nacionalitária, do dualismo e exclusão sociais e regionais, da (quase) guerra das religiões e das raças? Será que servem ou será preciso "repolitizar a política" e procurar (outros) políticos?

Jaime Nogueira Pinto, in "Politizar a política", Expresso, 30 Outubro 2004


29 outubro 2004

Excertos de um livro não anunciado (206)

É certo que a retórica recorre às verdades "lógicas" como bases de sustentação ou de inferência para fazer acolher um argumento. Mas não é quando convoca os valores lógicos que ela verdadeiramente se exerce pois só se pode argumentar no terreno das opções. Logo, o orador tem que avaliar a força dos argumentos em função do auditório, das suas convicções, das suas tradições, dos métodos de raciocínio que lhe são próprios. Contudo, uma coisa é descobrir a força de um argumento, outra é conseguir transmiti-la ao auditório. Neste campo, o sucesso do orador dependerá não somente da sua particular intuição comunicativa mas também do recurso a certas práticas ou procedimentos argumentativos susceptíveis de aumentar (ou preservar) a força dos argumentos.

28 outubro 2004

Mas que conversinha...

"Foi uma conversa entre amigos (entre Paes do Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa), não foi uma conversa hierárquica." - disse Paes do Amaral no Jornal da Noite da TVI (TSF-Online).

Por seu lado, Eduardo Prado Coelho afirma hoje na sua crónica do Público que "ou Paes do Amaral nos toma por parvos ou possui um extraordinário sentido de humor"

Mas a maneira como Paes do Amaral se esforça por nos convencer que ele e o "presidente da TVI" sao duas pessoas distintas, faz mais lembrar aqueles fenómenos de dupla personalidade. Só falta vir dizer-nos que não foi por ele (Paes do Amaral) que "o presidente da TVI" soube de tudo.

Palavra de especulador

George Soros à Visão, em 2004.10.21:

Os mercados financeiros são instáveis. Preservar a sua estabilidade pode requerer o respeito por regras precisas. É falsa a ideia de que alcançam o equilíbrio deixando-os actuar sozinhos. A economia necessita da intervenção das autoridades.

Se ele o diz...


26 outubro 2004

O futebol e a fé anti-clubista

Era impossível não reparar no orgulhoso “anti-benfiquismo” que Francisco Viegas exibiu para a "bancada central" blogosférica, no seu meio inquietante post "EU E O FUTEBOL, OU CONFISSÕES DE UM HOOLIGAN". "É só futebol. O resto - não me interessa" - diz o Francisco que, inclusivamente, passou a defender o direito à depressão colectiva depois que um ministro lhe disse que era preferível que o Benfica ganhasse um campeonato para que a moral do país levantasse. "É irracional. Não encontro explicação", reconhece. E "pronto". Estamos entendidos: é só futebol. O resto não lhe interessa. Bem tentou o leitor Hugo Jorge sensibilizá-lo para a possibilidade da "sua postura e aquilo que escreve, enquanto figura pública que é" contribuir para “manter a fogueira acesa” mas o Francisco não esteve para grandes "contenções de bola": ignorando o reparo, contra-ataca com um confessado “hooliganismo de trazer por casa”. Mas que chatice quererem que explique o que não tem explicação possível. É só futebol, diz. Nada mais.

O Benfica joga contra uma equipa de outro país? Francisco considera que mesmo nesse caso o Benfica é que é “de fora” e “torce” pela equipa estrangeira. Poderia este descarado anti-benfiquismo ficar a dever-se apenas a alguma incontida emoção de momento. Mas não é disso que se trata. Do que se trata é de uma decisão bem pensada, como o atestam as suas próprias palavras: “Eu fui holandês durante o PSV-Benfica. No dia do Anderlecht-Benfica senti-me sócio dos belgas desde a infância”. E não se vê logo que afirmações como estas são potencialmente explosivas para os sócios e simpatizantes do clube visado e que, de uma ou de outra maneira, podem contribuir para que os adeptos em geral encarem o simples adversário como um inimigo a abater?

Por muito irritantes que sejam “as maratonas televisivas antes e depois dos jogos”, nada parece mais impróprio “para gente civilizada, para pessoas sensatas e para o jornalismo em geral” do que dar testemunho público de uma ideologia desportiva que, passando ao lado do proverbial “que vença o melhor”, acaba antes por valorizar o lado mais sombrio de toda a competição: a humilhação, a vingança, o mal-querer e, em muitos casos, o ódio. Ora todos sabemos como a coisa está já demasiado feia no actual panorama futebolístico. Ainda nesta última semana, na sua crónica da “Sábado”, Pacheco Pereira chama-lhe “reino da selvajaria” e liga-o ao “atraso miserável dos nosssos costumes, com a colaboração activa das melhores forças vivas da nação” (falta saber a quem se refere). Alberto Gonçalves, por sua vez, afirma na mesma revista, que “Ódio a sério é aquilo a que se assiste no futebol português” e sugere até que a selvajaria passou já a ser encarada pelo povo do futebol como mais uma atracção para ir ao estádio. Para ver e, se possível, também para participar. Não será este estado de coisas suficientemente preocupante para justificar uma cultura desportiva sem fundamentalismos competitivos?

O Francisco argumenta com o exemplo dos amigos. Mas não está em causa o relacionamento com familares ou amigos onde até as palavras aparentemente mais ofensivas podem não passar de uma manifestação de carinho ou elogio. Não, não são as apostas, nem as provocações ou demais brincadeiras clubísticas, tão naturais entre amigos, que podem legitimar os “anti-qualquer coisa” futebolísticos. Além do mais, porque, como se sabe, a sociedade está longe de ser ou de funcionar como um grande grupo de amigos. Importaria, por isso, saber se tais “anti-clubismos” resistirão a algum crivo minimamente racional e, já agora, até que ponto a sua ostensiva manifestação pública favorece a instauração de um clima de paz social e desportiva. Repare-se na linguagem bélica a que, ainda na edição do Público de sábado, Miguel Guedes teve de recorrer para retratar a actual situação do nosso futebol: “Despojos de guerra – A seguir a uma semana de guerrilha, instala-se a depressão do pós-guerra. Uma espécie de “stress” pós-traumático.” Eloquente, nao é?

Devo confessar que nunca percebi porque deve um adepto complementar o natural desejo de que o seu clube vença e seja o melhor em cada jogo, com a “ganância” de querer que aconteça sempre o pior possível ao adversário, que é o que se passa com todos os “anti-clubismos”. Se o seu clube ganha os jogos que se propõe ganhar, que melhor razão teria para fazer a festa? Mas não. O “supremo gozo” será ver o adversário esmagado por tudo e por todos (mesmo por equipas de outro país). Bem se pode dizer que aqui não há Levinas que nos salve. Chegando o futebol, parece que a fraternidade entre iguais se esfuma, enquanto pressuposto incontornável da cidadania. É isso. O futebol tudo pode “autorizar”. Até uma eventual suspensão ética. Mas nesse caso, a que nobres valores e sentimentos ficaríamos associados? Dir-se-á que não há futebol sem paixão, sem expectativa, sem catarse ou sem festa e que nele, como acontece, de resto, em outras áreas do espectáculo e da própria vida, a emoção está, regra geral, acima da razão. É verdade. Repare-se porém, que nenhuma das restantes áreas ou actividades, por mais emocionantes que sejam, nos conduzem à mesma desalmada clubite que se observa no futebol. Talvez então que o verdadeiro problema do futebol não esteja na presença da emoção, mas sim, na ausência de razão. E daí que Francisco Viegas termine o seu post com um “recuso-me a explicar”. Pudera. Como explicar o que não tem explicação?

24 outubro 2004

O que diz Carrilho?

A avaliar quer pelo título (a) quer pelo teor da sua crónica no Expresso de ontem, Manuel Maria Carrilho confirma-se como o próximo candidato do PS à presidência da câmara de Lisboa, pelo que, muito provavelmente, o texto desta sua crónica ficará também a assinalar o primeiro acto de uma campanha eleitoral marcadamente antecipada.

É só ver como procura ligar o "socrático" conceito de "novas fronteiras" à necessidade de se romper com o "modelo tradicional de planeamento urbano" e ao "desafio que Lisboa necessita". É só notar a defesa que faz de "um projecto que deve inspirar a alternativa que é preciso propor à imaginação e à participação dos cidadãos nas próximas eleições autárquicas".

E para que tudo fique ainda mais claro, faz mesmo um pequeno resumo do que, em seu entender, Lisboa precisa. O que diz Carrilho? Diz que Lisboa precisa disto, que precisa daquilo e que precisa mais disto e mais daquilo. Que precisa dele, portanto.


a) "Lisboa arrasta os pés"


23 outubro 2004

A aparência de verdade

Os últimos anos de imprensa, e especialmente na televisão, deixaram claro que, longe de nos exibirem as pessoas tal como elas são, os órgãos de comunicação social mostram-nos uma "verdade construída"

Fátima Mata-Mouros, juiza do Tribunal Central da Instrução Criminal de Lisboa, in Publico, 20 Out 2004


Terão os meios de comunicação todo este poder de construir a verdade? Não. As verdades são o que são. Podem ser divulgadas e/ou amplificadas com mais ou menos veracidade, com mais ou menos persuasão. Mas nunca construídas ou inventadas. Se alguma coisa os meios de comunicação constroem, é a aparência de verdade e não a verdade propriamente dita. Isto, bem entendido, quando a aparência de verdade não chega já "construída" aos respectivos órgãos de comunicação.

21 outubro 2004

O texto blogosférico

Luis Carmelo e a "inevitável prudência do marinheiro solitário". A blogosfera como espaço ideal para articular os possíveis e os limites de todo o debate, em ordem a que nem a procura de verdade nem a afirmação de uma ideia possam legitimar a intolerância ou o desrespeito para com a pessoa que, simplesmente, pensa diferente de nós. O Luis explica como e porquê, neste seu post "O paradoxo da controvérsia sã". Grande texto.

19 outubro 2004

Excertos de um livro não anunciado (205)

Daí que o orador tenha todo o interesse em obter os melhores efeitos persuasivos com a maior economia de discurso possível, o que implica uma cuidadosa escolha dos argumentos, em função da sua respectiva força persuasiva. Mas o que é um argumento forte? Para Perelman, a apreciação da força de um argumento, parecendo marcadamente intuitiva, requer, contudo, a prévia separação entre duas qualidades: eficácia e validade. Uma coisa seria o argumento que persuade efectivamente, outra, o argumento que convence todo o espírito razoável. Dito de outro modo, a eficácia de um argumento estaria para o auditório a que concretamente é apresentado, como a validade para um auditório competente, em última análise, para o auditório universal. Pela nossa parte, contudo, retomando as reservas que já colocamos ao auditório universal, entendemos que não se deve associar a validade à força dos argumentos. Aliás, os próprios termos aqui utilizados por Perelman, força e validade, sugerem diferentes níveis de apreciação de um argumento, o primeiro, mais adequado à argumentação (retórica) e o segundo, próprio da demonstração (lógica). Porque se a metáfora da força parece uma expressão feliz para figurar a intensidade da persuasão talvez já não faça sentido falar de força da validade. A validade revela-se, é evidente, impõe-se por si mesma, sem precisar de qualquer empurrão argumentativo exterior.

18 outubro 2004

Ambíguas aspas

Caros Luis e Alberto: claro, claro... mas reparo agora que os meus "mimos" ficaram demasiado ambíguos. Se ainda vou a tempo, com o recurso às aspas quis precisamente sublinhar o tom amigável da vossa troca de opiniões. Por sinal, um exemplo de cordial discordância. A seguir.

Garfadas

Ao Orlando, do Letras com Garfos III: obrigado pela dica sobre o "Octávio". Não deixarei de experimentar. Só não entendi muito bem como é que o Orlando conseguiu preferir um restaurante sem nunca ter entrado nos que preteriu. Já agora, venha daí esse segredo...

16 outubro 2004

Falou e não disse mas disse mais do que falou

Com base nas declarações do Professor Marcelo Rebelo de Sousa que a TVI acaba de transmitir podemos, finalmente, encontrar respostas para as três perguntas fundamentais:


Porque saiu da TVI?

Foi um problema de consciência. Não estava cansado nem desagradado fosse com o que fosse. Até gostava muito do que fazia, tinha vontade de continuar. Mas depois daquela famosa "conversa", a sua filosofia de vida, os seus valores e princípios, não lhe deixaram alternativa. Tinha que parar, imediatamente. Nem mais uma crónica. Se voltasse à TVI nem que fosse só mais uma vez, para se despedir, teria que fingir que nada de grave se tinha passado, o que não seria correcto.

(Obs:se a conversa ofendeu os valores e princípios do professor, é porque o que foi dito tinha alguma gravidade).


Porque manteve até hoje o seu total silêncio?

Porque quis preservar ao máximo as ligações familiares e pessoais que estiveram na base da sua ida para a TVI (com destaque para o papel da "Rita")

(Obs: se o professor se remeteu ao silêncio para não perturbar as suas relações familiares é porque estava em causa algo de reprovável)


Porque NUNCA dirá exactamente o que lhe foi comunicado na dita conversa com Paes do Amaral?

Porque lhe foi pedido para nada divulgar dessa conversa e a isso se comprometeu.

(Obs: se o professor teve que se comprometer a não divulgar o conteúdo da conversa é porque quem a convocou terá agido premeditamente e com plena consciência da sua censurabilidade)


E agora sim, está tudo dito. Até aquilo que o professor nunca poderá dizer...

Palpite gastronómico

Tenho lido os "mimos" que Luis Carmelo e Alberto Gonçalves vêm trocando a propósito de Derrida, filósofo que ameaça tornar-se ainda mais polémico depois de morto. Luis elogia-o. Alberto ridiculariza-o. Sobre o autor agora desaparecido, ambos parecem ter a opinião segura que ainda me falta. Por isso os leio atentamente. Só espero que Alberto Gonçalves esteja mais familiarizado com o pensamento de Derrida do que aparenta estar sobre os restaurantes da Bairrada. É que, desculpe-me, mas só diz que a "Meta dos Leitões serve bem e em conta" quem nunca entrou no "Rei dos Leitões", escassas dezenas de metros antes, do outro lado da estrada, no sentido Lisboa-Porto. Experimente, Alberto. Vai gostar. Mesmo que não diga que vai indicado por mim.

14 outubro 2004

O que somos e o que queremos?

"Parece que o reducionismo esquerda-direita está para ficar. Que pena"... escrevia eu há um ano atrás (24.06.2003), logo no segundo dia de vida deste blogue e no meu terceiro post. Hoje vejo Pacheco Pereira puxar o assunto para título da sua crónica semanal no Público onde afirma, preto no branco, que a distinção Esquerda/Direita "tem cada vez memos sentido e gera mais confusões do que clareza".

E de facto, como pode uma divisão tão simplista representar adequadamente a complexa realidade sócio-política dos nossos dias, onde, como se sabe, apesar da cada vez maior homogeneidade ideológica, são várias as esquerdas sob a bandeira da "esquerda" e várias as direitas sob a bandeira da "direita", para já não falar das direitas mais à direita ou mais à esquerda e das esquerdas mais à esquerda ou mais à direita?

Na sua crónica de hoje, Pacheco Pereira tem, além do mais, o mérito de historiar as principais razões que nos levaram a este "simplismo classificatório" que, em seu entender, faz com que continuemos hoje "a falar da esquerda e da direita como se tal dissesse alguma coisa sobre o que somos e o que queremos".

Aqui, porém, permita-me o ilustre comentador alguma reserva. Será que falar da esquerda e da direita não dirá mesmo nada "sobre o que somos e o que queremos"? É indiferente apresentar-me como homem de esquerda ou de direita? Creio que não e receio até que ignorar completamente a distinção esquerda/direita seja incorrer num erro tão ou mais grosseiro do que transformar a distinção, como tantas vezes se faz, em mero rótulo ou carimbo. Vou, por isso, aguardar com muito interesse a prometida continuação do tema.

O barulho que o silêncio faz

Em mais um "Quadratura do Círculo" e depois de criticar o prolongado "silêncio de Marcelo", eis que Lobo Xavier também se mostra convencido de que o famoso ex-comentador da TVI nada de especial deve ter para nos dizer. Concordo inteiramente. Aliás, concordei por antecipação como se pode ver pelo que já no passado dia 8 aqui escrevi:

"Marcelo causa mais estragos calado do que a falar. E o professor sabe disso, melhor do que ninguém. Não lhe retirem, portanto, esse prazer. Se estivesse em causa alguma coisa verdadeiramente importante para o país, concerteza que já a teria tornado pública. Como seria, aliás, seu dever"

13 outubro 2004

Excertos de um livro não anunciado (204)

Para o sucesso de um orador muito poucas coisas serão tão decisivas como o saber em que momento deve pôr fim à acumulação dos argumentos. O problema da amplitude da argumentação está pois intimamente relacionado com o número e a extensão dos argumentos necessários para que o auditório dê assentimento às teses que lhe são propostas. Ainda que muito esquematicamente, as tarefas ou etapas da argumentação que todo o orador deve percorrer, podem ser escalonadas do seguinte modo:

1º. Assegurar-se que as premissas são admitidas pelo auditório
2º. Reforçar, se for caso disso, a sua presença no espírito dos auditores
3º. Precisar o seu sentido e alcance
4º. Extrair os argumentos em favor da tese que defende

Ora, sabendo-se que no discurso retórico nenhum argumento é constringente, antes contribui para reforçar a apresentação no seu conjunto, poder-se-ia supor que a eficácia de tal discurso depende do número de argumentos utilizados. Nesse sentido, quanto maior fosse a acumulação de argumentos, mais consolidada ficaria a adesão do auditório. Mas Perelman vem lembar que há boas razões para rejeitar essa visão tão linear e optimista, já que:

a) Um argumento que não esteja adequado ao auditório pode suscitar uma reacção negativa junto dos auditores. E, parecendo um argumento, irá afectar não só o conjunto do discurso como também a imagem do próprio orador.

b) Apresentar razões em favor de uma tese é sempre, por outro lado, admitir que ela não é evidente, que não se impõe a todos.

c) Há limites psicológicos que impedem uma ampliação não considerada dos argumentos. Se se trata de um discurso, a atenção e a paciência de quem escuta tem limites que é perigoso ultrapassar. Se se trata de um diálogo, não se pode esquecer que o tempo tomado por um orador é tirado àquele de que os outros disporiam.

10 outubro 2004

Nada a declarar

"Não tenho nada a declarar, excepto o meu génio"

Não sei porque pensei logo em Marcelo Rebelo de Sousa quando li no Notícias Magazine de hoje esta "máxima" de Oscar Wilde. Insondáveis mistérios, os do associacionismo.

As "juras" de Moniz

José Eduardo Moniz veio ontem à antena afirmar que na TVI são "invulneráveis às pressões e imunes aos diversos poderes». Isto foi, no mínimo, surpreendente. E porquê? Tratando-se de um profissional tão qualificado e experiente, José Eduardo Moniz tem obrigação de saber que não é por muito se afirmar a independência que esta é reconhecida. Foi sempre assim. Por exemplo, se sinto necessidade de afirmar que sou honesto, é porque isso não é uma evidência para todos. Logo, o melhor será ficar calado.

O que era preciso vir esclarecer era o modo como correu a tal "conversinha" entre o administrador da TVI e o comentador. Mas à necessidade de um esclarecimento concreto, Moniz preferiu refugiar-se em meras generalidades de "cartilha": "Seremos amanhã o que fomos ontem e o que somos hoje. Intransigentes com a verdade, determinados nos critérios, indiferentes às pressões, distanciados em relação aos diversos poderes e grupos de influência, livres nas opiniões" .

Por último, ao confessar que «Mais do que qualquer desejo individual, prevaleceram os interesses da estação que ajudei a reconstruir (...)" só deixou claro que acabou por dar mais importância aos intereses (da estação) do que aos principios e valores jornalísticos a que jurou fidelidade.

08 outubro 2004

Isto é que é preocupante

Ao governo terá saído o tiro pela culatra: Marcelo causa mais estragos calado do que a falar. E o professor sabe disso, melhor do que ninguém. Não lhe retirem, portanto, esse prazer. Se estivesse em causa alguma coisa verdadeiramente importante para o país, concerteza que já a teria tornado pública. Como seria, aliás, seu dever.

De resto, como penso que Pacheco Pereira já sublinhou na SIC, não é preciso conhecer o que se passou na conversa entre Marcelo Rebelo de Sousa e Miguel Paes do Amaral para concluir que houve pressões. As acusações de Gomes da Silva falam por si, quer quanto à linguagem ofensiva utilizada quer quanto ao seu abusivo teor. E é isso que é grave, independentemente dos motivos que terão levado o professor a renunciar à sua colaboração na TVI. Como diz João Morgado Fernandes, no seu Terras do Nunca, é "normal que o governo critique e até apele aos tribunais ou entidades reguladoras". O que não é normal nem aceitável é que se meta onde não é chamado, isto é, na esfera da liberdade de opinião de um comentador político.

Seria bom que isso ficasse claro, em primeiro lugar, para o próprio governo. Porque uma coisa é considerar que as infelizes acusações de Gomes da Silva foram um irreflectido acto pessoal, uma reacção "a quente", outra é vir a apurar-se (como parece estar a acontecer) que se tratou de uma conduta reflectida, premeditada e traduzindo a vontade do próprio primeiro-ministro. Claro que, no plano teórico, restaria sempre a hipótese de tudo não ter passado de um erro de avaliação mais ou menos avulso. Mas se assim fosse, Gomes da Silva e o primeiro-ministro já deveriam ter apresentado públicas desculpas, o que, como se sabe, não aconteceu. Pelo contrário, fica a impressão de que, neste caso, Santana Lopes está a agir em coformidade com valores que radicam na sua mais profunda convicção. E isto, sim. Isto é que é preocupante.

07 outubro 2004

Chamem-lhe burro

Cena hilária: Júlia Pinheiro, apresentadora da inenarrável "Quinta das Celebridades" "conversando" muito animadamente com o burro Pavarotti. A coisa promete. De uma assentada, o programa trata as pessoas como animais e os animais como pessoas. E é aqui que entram os burros. Perdão, o burro. A surpresa é que na total "despersonalização" em curso, o burro (que não é burro), parece estar a resistir muito mais do que alguns dos candidatos. Firme e hirto, não muda. Ele sabe que, mesmo na TVI, se não chegar a abrir a boca nunca o poderão calar. Agora chamem-lhe burro. Que me lembre, até agora, foi dos poucos que conseguiu deixar a "querida Júlia" a falar sozinha. Grande Pavarotti.

06 outubro 2004

O professor fechou o livro

"Na sequência da conversa da iniciativa do presidente da Media Capital, Miguel Paes do Amaral, decidi cessar, de imediato, a colaboração na TVI, a qual pude sempre livremente conceber e executar durante quatro anos e meio» (TSF Online)

Graças à sua exímia retórica, Marcelo Rebelo de Sousa já disse tudo. Disse, por exemplo, que a conversa que manteve com o presidente da Media Capital não foi de sua iniciativa. Disse também que, de sua iniciativa foi apenas a decisão de "cessar, de imediato, a colaboração na TVI". E se não disse que foi pressionado ou que quiseram restringir a sua liberdade de opinião nas futuras intervenções, que outra ideia poderia ele ter em mente ao salientar o facto de até aqui sempre ter podido "livremente conceber e executar" a sua colaboração?

Encostado à parede pela própria direcçao da TVI, o professor resolveu bater com a porta, dando assim maior visibilidade ainda à ridícula interferência do governo em matéria de liberdade de opinião. Mas é ou não é muito curioso que o mesmo ministro do PSD (Gomes da Silva) se apresse a dizer que Marcelo Rebelo de Sousa não será alvo de processo disciplinar, ao mesmo tempo que o acusa de mentir e, sem contraditório, destilar ódio sobre o governo liderado pelo actual presidente do seu partido?


Nota:
Tenho para mim que as reservas que se podem colocar aos sistemáticos ataques de Marcelo Rebelo de Sousa (e outros comentadores) ao seu próprio partido, são compreensivelmente dirigidas à sua qualidade de militante e não à de comentador político. Aliás, é certamente por se reconhecer a necessidade de independência e isenção nesta segunda função que, por vezes, se suspende, temporariamente, a primeira.

03 outubro 2004

Excertos de um livro não anunciado (203)

Acresce o facto desta espécie de metáforas surgirem por vezes ainda mais condensadas quando resultam da confrontação de uma qualificação com a realidade à qual se aplicam. É o que sucede se para descrever as façanhas de um guerreiro utilizamos a expressão este leão arremeteu querendo com isso dizer que ele é, em relação aos outros homens como o leão em relação aos outros animais. Com efeito, dizer que um homem é um leão ou um cordeiro, é descrever metaforicamente o seu carácter ou comportamento, com base na ideia que se tem do comportamento desta ou daquela espécie animal. É a chamada fusão metafórica do foro (animal) com o tema (homem).

02 outubro 2004

Da sanção sem culpa à culpa sem sanção

Tem sido amplamente divulgado que, por proposta da Comissão de Inquérito nomeada pelo PS para apurar as responsabilidades sobre o que se passou na Lota de Matosinhos, nem Manuel Seabra nem Narciso Miranda poderão candidatar-se à presidência da Câmara de Matosinhos nas próximas eleições autárquicas. E a gravidade da anunciada sanção não deixava dúvidas: um e outro teriam que notoriamente ter concorrido, directa ou indirectamente, para a produção de tão lamentáveis incidentes.

Foi, por isso, com a maior surpresa que vi Almeida Santos afirmar na sua entrevista de hoje ao Jornal de Notícias que "A sanção tinha de ser a mesma, porque mesmo sem o que ocorreu na lota não seriam candidatos. Era do interesse do partido não haver divisão de votos". Mas se os dois sempre seriam impedidos de se candidatarem à presidência da Câmara (por não ser esse o interesse do PS) que raio de sanção a Comissão de Inquérito lhes aplicou? Nenhuma, evidentemente. Porque se fez então passar por severa medida disciplinar uma decisão que, pelos vistos, já fora tomada muito antes de ocorrerem os incidentes na lota? Porque se nomeou mais uma Comissão de Inquérito "para inglês ver"?

01 outubro 2004

O que "diz" a foto?

O Manuel Pinto colocou hoje no seu blogue Jornalismo e Comunicação esta foto do debate Bush-Kerry que, pelas diferentes interpretações possíveis para que remete, vem chamar a atenção para o modo como as imagens influenciam a construção de sentido. Além disso, considera - em jeito de desafio - que seria interessante "analisar as imagens do debate e o modo como elas constroem sentido e veiculam posicionamentos". Deixo aqui uma minha primeira contribuição para essa análise, que, por agora, se ficará pela foto que aparece a ilustrar o referido post.

O que diz a foto, afinal? Excelente questão. Apesar da óbvia polissemia, pode-se talvez isolar, embora sempre probalisticamente, alguns dos seus principais sentidos. Creio que um desses possíveis sentidos, passa por reconhecer que se trata aqui de um caso em que a perspectiva, o ângulo e o enquadramento escolhidos, ainda que favorecendo, aparentemente, um dos intervenientes no debate (Kerry), acabam por apelar mais à difusa superioridade do outro (Bush). E isto na medida em que na situação ou cena retratada, o primeiro surge “colado” a uma atitude de passividade, de conformação, ou até de subordinação (que é para onde reenvia a escuta e o olhar atento que dirige ao seu adversário), enquanto que o segundo, apanhado no uso da palavra e a olhar em frente (como que ignorando a presença do seu adversário), mais facilmente será associado à acção, ao poder de iniciativa e à liderança, atributos que são, como se sabe, dos mais valorizados em altura de eleições. Diria mesmo que, o facto da figura de Bush sair proporcionalmente “prejudicada” face à de Kerry, acaba por funcionar em favor do “apagamento” ou “menorização” deste último, na medida em que só amplifica a sua situação de desvantagem. Basta lembrar aquelas outras fotos de situações de poder e dominação onde, apesar de ser a multidão de ouvintes ou seguidores a aparecer em grande plano, é o poder do líder que sai enaltecido, mesmo se a foto só lhe apanha um pouco mais do que a cabeça. Se este raciocínio está certo, melhor seria para Kerry que a foto não lhe desse a evidência visual que realmente lhe confere.