29 junho 2004

A desumanização na ciência e na política

Diz Nuno Crato: (*)

Habituarmo-nos passivamente à ciência e à técnica não é sinal de civilização. A supresa e a curiosidade são muito mais humanas.

***

Será que nestes "tempos palavrosos" - a que muito bem se refere João Morgado Fernandes - não corremos o risco de, um dia destes, ser necessário dizer o mesmo da política? Temo bem que sim. Há, por certo, entre os "nossos" políticos quem seja perito em estratégias ou joguinhos de poder, quem arrebate multidões pela palavra ou consiga "vender" uma imagem pública de competência, rigor e abnegação pela causa pública. Não obstante, já nem assim nos surpreendem ou despertam qualquer curiosidade. Está em curso, portanto, a desumanização da política. E não há democracia que resista a uma tal escalada. Ou muito me engano, ou foi inventada uma nova forma de singrar na vida pública: perseguir interesses pessoais "a bem da Nação".

in Expresso, 19 Julho 2004/ÚNICA, p. 87

Excertos de um livro não anunciado (189)

(...) Diz Perelman que os lógicos tendem a considerar as definições como arbitrárias mas que isso só é válido num sistema formal no qual se supõe não terem os signos outro sentido do que aquele que lhes é convencionalmente atribuído, pois numa língua natural já tal não acontece, a menos que se trate de termos técnicos nela introduzidos com o sentido próprio que lhes impõe. Se o termo já existe, ele é solidário, na linguagem, de classificações prévias, de juízos de valor que à partida lhes conferem uma coloração afectiva, positiva ou negativa, já não podendo a definição do termo ser considerada arbitrária *. Ora os valores, sendo controversos, devem ser justificados através de uma argumentação que leve ao reconhecimento do argumento quase lógico com base no qual se justifica aderir à definição. Por isso, ou uma noção pode ser definida de várias maneiras e terá de se efectuar uma escolha, o que pressupõe a sua discussão, ou essa noção orienta o raciocínio, como no caso de uma definição legal e deverá ser justificada, excepto se se dispuser da autoridade do legislador.(...)

* Perelman, C., (1993), O Império Retórico(1993), Porto: Edições ASA, p.80

27 junho 2004

Ética de trazer por casa?

A ÚNICA, do Expresso desta semana (26.06.2007), traz publicado um trabalho sobre os homens e mulheres "gays" e lésbicas que optaram por ter filhos à margem da lei e das convenções tradicionais chamando a atenção para o facto de que cada vez mais crianças são pensadas e concebidas numa relação homossexual.

Tratando-se de matéria reconhecidamente polémica, quer pela sua novidade quer pelo conflito axiológico em que emerge, são sempre muito bem-vindos todos os argumentos e contra-argumentos, exemplos ou ilustrações, que possam vir a fazer alguma luz sobre o melhor caminho a seguir.

O que dá que pensar é a reacção "ética" do médico a quem duas lésbicas, vivendo juntas há mais de oito anos, foram pedir ajuda para chegarem à experiência da maternidade através da inseminação artificial, reacção essa de que esta parte do texto muito claramente nos dá conta:

Numa clínica de Lisboa, o médico comunicou-lhes que por razões de ordem ética, não poderia fazer a inseminação. Mas sugeriu que as próprias a concretizassem - o plano era simples: uma inseminação caseira, leia-se, feita em casa.

Ó meuszz amigoszzz... "razões de ordem ética"?

Que ética será a deste médico que recusa uma inseminação artificial na clínica onde trabalha mas já se conforma e até a sugere, se for feita em casa da interessada? Enfim, só pode mesmo ser uma ética de trazer por casa...



26 junho 2004

Primeiros aniversários

Saudações para três blogues tão distintos:

Terras do Nunca do João Morgado Fernandes

avatares de um desejo do Bruno Sena Martins

opiniondesmaker do Antonio Jacinto

Parabéns.

24 junho 2004

Obrigado a todos

O Retórica completa hoje 1 ano de edição.

Estou mais satisfeito com os restantes blogues (onde tenho aprendido muito), do que com o meu. Mas ainda bem. É sinal de que só tenho a ganhar em permanecer por aqui.

Ao longo do ano, fui visitado, certamente, pelos leitores mais amigos e tolerantes da blogosfera - a avaliar pela atenção e pelo encorajamento com que frequentemente me distinguiram.

Há gestos, pequenos gestos, que nos tocam e surpreendem, também neste mundo virtual: um link, uma menção, um comentário crítico, um reparo, um elogio. E não são apenas gestos "mecânicos" ou "electrónicos". São gestos de pessoas, que - pasme-se - ainda pensam e sentem como pessoas. Gente com uma "inteligéncia amável" que a todos prende e cativa. E essas, são sempre pessoas inesquecíveis. Como a Carla Hilário de Almeida Quevedo. Como o Pedro Caeiro. Como alguns mais a quem peço desculpa por não nomear.

Não se estranhe, por isso, que entre a solidária divisa do "todos podemos ser úteis uns aos outros" e a atitude agonística de "combater ou reduzir a zero os discordantes" me incline a favor da primeira, também nos blogues, pois que a ilusão não nos cegue: os blogues, como a própria vida, só valem a pena... se for pra nos divertirmos.

Obrigado a todos.

20 junho 2004

Exame de economia

No seu post de 19.06.2004, o João Miranda, do BLASFEMIAS, submeteu o Rui, do Adufe, a um verdadeiro exame de economia, sem adiantar qualquer texto de apoio, o que, em princípio, terá aumentado o grau de dificuldade das respostas.

Ainda fiquei na expectativa para ver que nota é que o Rui iria tirar mas uma saltada até aqui, acabou com toda a minha ilusão já que ele, que não anda nisto há dois dias, optou por não responder a nenhuma das 26 perguntas do João Miranda (sim, não é erro, foram mesmo 26 perguntas, num único post - o Rui contou só 17 mas enganou-se, pois alguns dos 17 pontos do João, contêm mais do que uma...). E em vez disso "respondeu-lhe" com uma única pergunta.

Vamos lá a ver no que ficam estes dois tão qualificados polemistas. Por agora e no meio de tanta pergunta é natural que ainda me interrogue sobre o que realmente estava em causa na sua polémica (que parece vir de trás). O que desde logo me chamou a atenção foi, não apenas a inusitada quantidade de perguntas num só post, mas também o facto de me parecer bem patente como as posições teórico-científicas sobre a coisa económica são afinal tributárias das diferentes inclinações ideológicas de cada um. Porque, como diz a famosa Margarida: não há coincidências.

Já agora, assinale-se como a maioria (ou totalidade) dessas perguntas se prefiguram como autênticas perguntas retóricas na medida em que cada um dos questionadores já conhece a resposta à própria pergunta, mesmo antes de a fazer. Mera questão de estilo ou necessidade de dizer algo mais do que a pura literalidade permite? No caso em apreço, vou mais por esta segunda hipótese. Mas, para ser franco, depois de 25 perguntas consecutivas, receio bem que já nem a própria literalidade se salve...

A retórica no "Quadratura do Círculo"

Por mérito do António Lobo Xavier, a discussão de hoje na Quadratura sobre as eleições e o futuro da coligação vale a pena ser ouvida. É uma discussão livre, aberta, comprometida, franca, de política portuguesa que me deu muito prazer ter.

Pacheco Pereira, no Abrupto - 19-06-2004


Acabei agora mesmo de ver o programa na SIC Notícias (em repetição) e subscrevo a apreciação de Pacheco Pereira.

Foi um verdadeiro regalo ver como a retórica pode ser posta ao serviço de cada perspectiva político-ideológica sem agredir, nem indispor, nem iludir os restantes interlocutores ou o próprio auditório, bem pelo contrário, favorecendo o saudável confronto dos diferentes projectos e suas razões fundantes. Penso que o António Lobo Xavier teve, de facto, um mérito muito especial pelo modo franco e aberto como abordou a questão de se saber se a actual coligação governamental durará apenas até às próximas "legislativas" ou se se prolongará para além dessa data. Mas quer Pacheco Pereira quer José Magalhães, estiveram igualmente muito bem, tanto a falar como a escutar. Fiquei aliás, com a sensação de que, desta vez, só o Carlos Andrade (que tem ali, a meu ver, a tarefa mais ingrata de todas) terá exagerado um pouco no capítulo das interrupções. Diga-se, por último, que é muito boa ideia repetir o programa ao domingo.

Entrevistadora que "traduz" a entrevistada

A entrevista de Margaret Doody, de hoje, ao Notícias Magazine do JN, traz esta "pérola"...

A entrevistada diz:
Ao contrário de Platão, Aristóteles não parecia acreditar numa única e transcendente verdade

A jornalista* "traduz" para a "caixa":
Ao contrário de Platão, Aristóteles não acreditava numa única verdade

Ou seja:

1)A expressão não parecia acreditar foi "traduzida" para não acreditava. Mas entre não parecia acreditar e não acreditava vai, como se sabe, uma diferença de sentido do tamanho do mundo...

2)A expressão numa única e transcendente verdade foi "encolhida" para numa única verdade, sonegando-se assim a qualificação da dita verdade (como transcendente).

O JN merece mais. E os seus leitores também.
À atenção do Provedor.

Isso mesmo

Na retórica de Aristóteles demonstra-se como pode ser manipulativa, como pode ser uma forma de iludir a verdade ou de a procurar

Margaret Doody, autora de "Aristóteles Detective"
in Notícias Magazine - Jornal de Notícias, 20.06.2004

19 junho 2004

Excertos de um livro não anunciado (188)

(...) O carácter quase lógico de que este tipo de argumentos [argumentos de incompatibilidade] se reveste, traduz-se, portanto, num recurso à configuração representacional de operações tradicionalmente tidas como estritamente lógicas, mas sem que delas se possa necessariamente extrair o mesmo tipo de consequências que ocorrem no seio da lógica formal. É o caso, por exemplo, da identidade e definição. Como se sabe, uma identidade puramente formal ou se funda na evidência ou é estabelecida convencionalmente. Logo, não é susceptível de controvérsia. Mas esse não é o caso das identificações que têm lugar na linguagem corrente. No caso da definição, ao pretender-se identificar o definiens com o definiendum, está-se a fazer um uso argumentativo da identidade, já que as definições tratam o termo definido e a expressão que o define, como intermutáveis.(...)

17 junho 2004

Aplausos para o Aviz

Pelo Terras do Nunca fiquei a saber do 1.º aniversário do blogue do Francisco. Também eu gostava de o ver a escrever mais vezes e mais regularmente no seu blogue mas, como já dizia o outro, "é a vida". Parabéns, Francisco.

15 junho 2004

Excertos de um livro não anunciado (187)

(...) A contradição só leva ao absurdo quando a univocidade dos signos não deixa em aberto qualquer hipótese de lhe escapar, o que não sucede com as expressões formuladas numa língua natural, sempre que se possa presumir que aquele que nos fala não diz coisas absurdas. É por isso que Perelman sustenta que na argumentação nunca nos encontramos perante uma contradição propriamente dita, mas sim, perante uma incompatibilidade, quando uma tese sustentada em determinado caso, entra em conflito com uma outra, já afirmada anteriormente ou geralmente admitida e à qual é suposto o auditório aderir. É que, ao contrário da contradição que nos levaria ao absurdo, a incompatibilidade apenas nos obriga a escolher uma das teses em conflito e a abandonar a outra ou restringir-lhe o alcance. (...)

14 junho 2004

Amigos

É bom ter amigos?

De tempos a tempos, não sei bem porquê, detenho-me na radicalidade desta pergunta. E, se estão em causa amigos "pouco chegados" nem sempre respondo da mesma maneira. Ao sabor do tempo e da vida, das circunstâncias ou, talvez, dos humores, noto que o regime da minha resposta vai oscilando entre o categórico e o indeciso, entre o alegre e o triste, o céptico e o esperançoso. É lógico: o comportamento varia e a apreciação também.

Muito diferente, porém, é o que se passa com os meus amigos, propriamente ditos. Esses permanecem em geral imunes a grandes variações apreciativas. Estão sempre muito para lá da frieza calculista em que se traduz o mero "deve e haver" relacional. Os meus verdadeiros amigos não têm lugar nem tempo. Nem contas para me prestar. São os legítimos donos do meu afecto. Emocionam-me, fazem-me ser, determinam-me. E, provalmente, nunca saberão o quanto lhes devo.

08 junho 2004

Sim, correu muito bem

Este é, provavelmente, o meu post mais extenso de sempre. Mas a pedido de várias famílias, vou hoje dar conta de como correu a apresentação do meu novo livro, na passada quinta-feira, no Auditório Municipal de Gondomar. Para facilitar a leitura, divido-o em três partes: (1) o programa, (2) o evento e (3) a apresentação.


1) O PROGRAMA

Foi o seguinte, o “programa das festas”:

*Apresentação: Paula Lima, jornalista de rádio.

*Guitarra clássica: Ricardo Carvalho, interpretação das peças “Vilanela” de Fernando Lopes Graça e “Fantasia” de Alonso Mudarra.

*Constituição da Mesa: Dr. Fernando Paulo - Vereador do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Gondomar, Prof. Doutor Manuel Pinto - Apresentador-convidado e Américo de Sousa - Autor

*Ginástica acrobática: exibição do grupo de ginástica acrobática da Escola EB 2,3 de Fânzeres, sob orientação da Prof.ª Carla Araújo

*Apresentação do livro: Prof. Doutor Manuel Pinto - Docente e investigador na Universidade do Minho e actual Provedor dos Leitores do Jornal de Notícias

*Debate

*Coreografias: exibição do grupo de coreografias da Escola EB 2,3 de Fânzeres, sob orientação das Prof.ªs Ana Paula Sousa, Cláudia Brito e Lídia Neves.

*Porto D’Honra / Autógrafos



2) O EVENTO

Notas soltas:

Estiveram presentes cerca de 250 pessoas.

A actuação do guitarrista Ricardo Carvalho e dos grupos de ginástica acrobática e coreografias da escola Eb 2,3 de Fânzeres, “caiu” muito bem no auditório que não lhes regateou aplausos, ao mesmo tempo que revestiu o evento de apropriada tonalidade artístico-cultural.

A apresentação da obra, feita pelo Prof. Doutor Manuel Pinto, prendeu a atenção de todos, pela sua clareza e profundidade, e também pelo modo como soube transmitir aos presentes a sua muito cuidada e certeira interpretação do livro.

Durante o debate, o autor aproveitou para esclarecer as principais motivações que o levaram a eleger os desafios éticos do futuro tecnológico como tema central da sua investigação, após o que fez um agradecimento especial ao Dr. Fernando Paulo, responsável pelo Pelouro da Cultura da Câmara de Gondomar e à Dr.ª Susana Sistelo, Presidente do Conselho Executivo da Escola EB 2,3 de Fânzeres, pelo apoio logístico e cultural com que o distinguiram.

No final foi servido um Porto D’Honra por elementos do Rancho Folclórico da Portelinha de Fânzeres que, trajados a rigor, deram ainda mais colorido ao convívio, nomeadamente, entre aqueles que se encontravam na fila para os autógrafos.

Foi isso. Correu muito bem. Obrigado a todos.



3) A APRESENTAÇÃO

E agora, só para os mais curiosos, deixo aqui algumas das palavras proferidas pelo Prof. Manuel Pinto durante a apresentação do livro que titulou como:

Usos e abusos do talento humano na era tecnológica

Vivemos tempos tão desafiadores, inquietantes e, de um certo ponto de vista, tão alucinantes que só podemos agradecer a quem nos convida a deixar à porta as certezas e a aceitar reflectir sobre o mundo em que queremos viver e que pretendemos deixar aos nossos vindouros. É o caso do autor deste interessante livro “O homem com medo de si próprio”. Um título chamativo (ao qual regressarei mais adiante), com um subtítulo que aponta a matéria a tratar: o cada vez mais complexo jogo entre a ética e a técnica ou, mais propriamente, a tecnologia. Um livro, diga-se, bem apresentado, bem costurado, de singela capa, bela na sua simplicidade e poder comunicativo. (...) À medida que [o] lia (...) também me dei conta, como o leitor decerto comprovará, de que os assuntos tratados tocam no mais íntimo de nós, como indivíduos e como espécie humana. Porque são questões que têm que ver com confiança e claudicação, medo e coragem, acção e paralisia, e, em última instância, com questões de vida e de morte. Nada menos: de vida e de morte.

***

Mas de que trata, afinal, o livro que hoje aqui nos trouxe? De uma forma simplista, “O homem com medo de si próprio” trata do mundo que a tecnologia está a produzir diante dos nossos olhos, sem que, frequentemente, nós nos apercebamos para onde é que esta barca se encaminha, em águas tão agitadas(...) quando nos chegam notícias sobre armas de destruição maciça, sobre clonagem de embriões humanos, sobre implantes de chips no cérebro de pessoas, de modo a poder manipulá-las, começam a soar as campainhas da inquietação e do medo. E a emergir no espaço público aquelas perguntas que muitos não querem que se faça, porque as não querem ouvir: aquilo que se pode fazer, deve-se fazer? (...) Mais: em que medida poderemos continuar a falar da pessoa humana, com a sua identidade, a sua autonomia e a sua cidadania, tal como hoje a concebemos, quando o ente que se pode estar a desenhar é já “outra coisa”, produto de implantes, de próteses ou de transplantes, ou um híbrido pessoa-máquina? É disto que trata o livro que aqui nos reúne esta noite. Não se está a falar apenas de cenários futuristas e utópicos, desenhados ou sonhados por loucos. Não. É de problemas próximos de nós (...)

***

(...) pesando as vantagens da pesquisa científica e tecnológica de ponta e os riscos que ela pode comportar, será legítimo ou mesmo razoável que se suspenda o progresso? Que se renuncie à inovação, por causa do risco? A que critérios deitar mão, para discernir, no meio de tão magna encruzilhada? Poderão os referenciais éticos que fundam as nossas sociedades aguentar intocados perante desafios tão surpreendentes? (...) O ensaio das respostas é o tema desta obra. Não deverei desvendar a argumentação do autor, para que possam fazer, como eu, a experiência, a um tempo intelectual e emocional, da apresentação do tema, dos problemas e reptos nele contidos, dos argumentos aduzidos para os analisar e das conclusões a que é possível chegar. É assim também uma sinfonia musical. Ou uma narrativa. E este livro pode ser lido como uma narrativa de segunda instância sobre os horizontes das sociedades contemporâneas. Ela fala-nos do fosso entre o poder de agir e o poder de prever e de ajuizar (p.50). Fala-nos da humildade, da cautela, de uma nova sabedoria para lidar com o imprevisível, com a abertura de novos cenários para a qualidade da vida humana e social (...)

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“O homem com medo de si próprio” seria, por conseguinte, não o homem – e a mulher – encurralados, petrificados, impotentes, mas, antes, perspicazes, inquietos, insubmissos, prudentes, capazes da “ponderação dos benefícios que se esperam e dos riscos inerentes à sua obtenção”. Uma dúvida que tenho, e que poderia ser uma achega à reflexão de Américo de Sousa, refere-se às incidências da lógica de pendor produtivista, de eficácia, de competitividade e mesmo de feroz competição, que marca estruturalmente as nossas economias e contagia cada vez mais áreas que se mantinham relativamente à margem desse clima. Em que medida a dinâmica interna desta “ordem do mercado”, digamos assim, não tornará imparável a corrida para ver quem chega primeiro ao reino do desconhecido, ou, se quisermos, ao reino dos aprendizes de feiticeiro?

***

(...) em que medida poderemos continuar a alimentar uma concepção de ciência que remete para segundo plano, quando não ignora ostensivamente, o lugar das ciências sociais e humanas, no que elas têm de específico e quiçá decisivo a dar, na compreensão das circunstâncias subjectivas, contextuais, históricas e culturais dos novos inventos e cenários tecnológicos? (...) O paradoxo reside precisamente aí: queixamo-nos dos riscos de as máquinas tomarem a dianteira às pessoas (p.99), mas organizamos as coisas de tal modo que é precisamente isso que pode estar a acontecer. Evoco, neste contexto, a imagem do “poço da morte” das nossas feiras e festas populares. A pessoa que velozmente circula em espiral na parte de dentro do poço tem de ser capaz de encontrar o ponto justo da velocidade, de modo a não andar tão depressa que saia disparado pela boca superior, nem tão devagar que perca a aderência e se esmague no fundo. O que dá a noção do ponto justo a este nosso piloto é, em alguma medida, o mesmo de que precisa a tecnociência para não se perder de forma irremediável (...)

***

Como a acção, para ser eficaz, carece de sentido e argumentos, torna-se vital fazer da ciência e da técnica matéria de debate público: os rumos, os projectos e os ritmos da investigação científica e tecnológica são demasiado importantes para serem assumidos, nas suas potencialidades e nos seus riscos, apenas pelos especialistas (p.62). O livro apresenta-se precisamente como uma espécie de mapeamento de alguns dos pontos centrais que devem ser submetidos à discussão (p.99). É aí que está o seu interesse e o seu alcance. De resto, é-me grato sublinhar o tom afirmativo e esperançoso que o autor dá à sua obra. Escreve, no remate final: “Acreditamos no homem. Bem certo que mais nas capacidades do que nas acções, mais na ciência do que na aplicação do saber. Mas acreditamos. Não só porque o passado nos oferece boas razões para acreditar, mas também porque, no desafio da vida, não acreditar seria o mesmo que entrar em campo já a perder”. Ou ainda, nas palavras do autor, “todos somos responsáveis, tanto na hora de semear como na altura de colher”. Eu não saberia dizer melhor.

Manuel Pinto

06 junho 2004

Pessoalização global

*Dedicado ao Pedro Caeiro

Alguns amigos fisicamente mais distantes - e em especial, os meus amigos brasileiros - pedem-me que deixe aqui algumas notas sobre como correu a apresentação do meu livro “O homem com medo de si próprio". É evidente que não posso deixar de satisfazer tão simpáticas manifestações de curiosidade e interesse, que, aliás, muito me honram, mas antes, delas gostaria de retirar as duas seguintes ilacções.

A primeira é a de que a globalização electrónica, não se limita, afinal, a proporcionar uma cada vez maior massificação de contactos, onde tendencialmente ninguém repara em ninguém e em que o “outro” surge fundamentalmente como emanação abstractizante de uma multidão de “outros” sem rosto e sem nome, pela ordem natural das coisas e da vida tão “genéricos” ou tão “iguais” que, à excepção do seu relevo estatístico, para nada e para ninguém parecem contar.

Pelo contrário. O que o interesse manifestado por estes meus amigos parece mostrar, é que a comunicação através do blogue tanto pode ser de ordem geral ou abstracta, como muito particular e concreta. Seria, portanto, um erro crasso, catalogá-la como forma de comunicação empobrecida ou, mais grave do que isso, empobrecedora, quando comparada com a que decorre em ambiente real, nomeadamente, no “face-to-face”. Porque se é verdade que o blogue não substitui a co-presencialidade física dos interlocutores, o facto é que alarga incrivelmente as nossas possibilidades de convivência social e humana (como, de resto, já acontecera com o não menos virtual telefone).

A minha segunda ilacção é a de que me posiciono na blogosfera de modo muito divergente, quiçá antagónico, daquela “impessoalidade” de que falou Pacheco Pereira, em tempos, no seu Abrupto. De facto, no blogue ou fora dele, a mim o que o que me interessa é contactar com pessoas concretas, que sei que existem como tal independentemente do nosso contacto ser apenas via electrónica ou digital, pessoas que, de uma maneira ou de outra, partilham comigo esta vida e este mundo, numa caminhada comum.

Mais: no blogue ou fora dele, quando me dirijo a alguém estou forçosamente a pessoalizar o que digo, pois, como se sabe, a interlocução não se compadece com mensagens deixadas no ar, a não ser por razões estilísticas. Tenho, por isso, necessidade de “antecipar” o meu interlocutor, imaginando para que tipo de pessoa estou a escrever, que tipo de vida levará, qual a sua qualificação profissional, cultural ou académica, o grau de profundidade que terá sobre o assunto e muitos outros detalhes ou atributos, tantos quantos fazem com que uma pessoa seja realmente a pessoa que é, e não qualquer outra.

Quer isto dizer que a pessoalização no virtual fica dependente do conhecimento da pessoa física, no chamado “mundo real” ou só com este último se completa? Não. Diria até que “viver” na blogosfera ou na net é muito diferente do viver na chamada “sociedade real”. Tão diferente que pode até levar a que duas ou mais pessoas convivam sem problemas de maior ao nível do relacionamento virtual-blogosférico e no entanto, depois de se conhecerem pessoalmente, deixem de sentir a empatia ou admiração mútua que aqui tanto as tinha aproximado. E isto, entre outra razões, porque há incompatibilidades temperamentais que permanecem mais ou menos camufladas pelo “virtual” mas adquirem uma súbita visibilidade quando o relacionamento passa a ocorrer fora do computador.

Por aqui se vê que a pessoalização de que falo - a pessoalização no virtual - pode mesmo conviver, sem grandes ondas, com o próprio anonimato já que, a meu ver, a identidade de cada um não começa nem termina na divulgação do seu nome. Funda-se, isso sim, na sua personalidade, no seu comportamento habitual, naquilo que de uma forma continuada e estável mostra ser. Identidade blogosférica ou virtual é então, sobretudo, uma individualidade. Não já este ou aquele nome, mas esta ou aquela pessoa, ou, para ser mais exacto ainda, um certo pensamento, que todos temos legitimidade de interpretar ou intuir.

Mas não é também assim que desde sempre seleccionamos os nossos amigos, no real?
Creio que é. A prova é que, quando na passada quinta-feira, a certa altura um dos presentes no Auditório Municipal de Gondomar se volta para mim e diz: “Américo: eu sou o Pedro Caeiro”, a estranha sensação que tive foi a de que estava a falar de viva voz com um amigo, um grande amigo, que apenas “já não via há muito”. E no entanto, nunca nos tínhamos encontrado antes, a não ser... nos blogues. Digam lá agora que a pessoalização blogosférica é pura ficção. Obrigado, Pedro.

04 junho 2004

A bipolaridade filosófica

Ainda indeciso quanto a deixar ou não aqui algumas notas sobre a "minha" apresentação de ontem, reparo neste magnífico post de Pedro Lomba, no Fora do Mundo:


PLATÃO-1 - ARISTÓTELES- 1: Ouço falar na doença bipolar. E sei, porque sei, que a bipolaridade é uma doença de séculos. Schlegel, por exemplo, dizia que cada um de nós é ou platónico ou aristotélico. Os platónicos valorizam as ideias, os aristotélicos atêm-se à experiência. Conheço muitos aristotélicos e uns quantos platónicos. Eu próprio sou um aristotélico quando é preciso, porque - facto importante - sou frequentemente aquilo que é preciso ser. Mas fora disso, sou outra coisa. Não sou platónico, não sou aristotélico. Posso ser as duas coisas. Posso não ser nenhuma. E vou ficar por aqui para não me confessar mais. [P.L.]



03 junho 2004

Então...

Até logo, com um cálice de Porto na mão e um livro no olhar. Bem-vindos.