31 dezembro 2005

E está tudo dito

"Fiz a escolha que achei mais adequada para o País. Mário Soares foi um Presidente que soube ouvir o povo e tem grande prestígio internacional. São essas as qualidades principais de um Presidente"

"Fiz a escolha" - diz Sócrates. E está tudo dito. A dúvida é: o que diriam agora aqueles que vêem Mario Soares como Presidente ideal (Vital Moreira, Medeiros Ferreira & C.ª) se Sócrates tivesse escolhido um outro candidato? Tenho um palpite: diriam que qualquer outro candidato é melhor do que Cavaco Silva. E, de novo, estaria tudo dito.

Publicado n'O Eleito.

30 dezembro 2005

Ponto para o Governo (e para Freitas do Amaral)

Sei que não é a melhor altura para falar bem do Governo, ainda por cima, a propósito de um acontecimento que saiu da agenda mediática tão rapidamente como entrou. Mas tem que ser, pois é justo que o faça. Refiro-me àquelas acusações que Freitas do Amaral fez, há cerca de um mês, à presidência britânica da UE e que, para falar muito francamente, me pareceram na altura bastante inoportunas, excessivas e até injustas.

Inoportunas, devido à fase de impasse negocial em ocorreram; excessivas, pela agressiva tonalidade da afronta; e injustas, porque dirigidas apenas ao Reino Unido quando, como bem salientou
Pacheco Pereira, dois são os responsáveis por tal impasse: "o Reino Unido, que se recusa a abandonar o privilégio do ‘cheque britânico’, e a França, que deseja a continuidade da PAC no centro das políticas europeias, defendendo uma Europa agrícola subsidiada" (*). Pacheco Pereira estava mesmo convencido que as declarações de Freitas do Amaral iriam prejudicar Portugal (**). Devo confessar que eu também.

Felizmente que nos enganámos os dois. E é bem provável que se tenham enganado muitos mais. Por vezes, só quem está por dentro do segredo das coisas tem condições para acertar na melhor decisão. Mas o que verdadeiramente agora interessa é que se o acordo alcançado não significa uma grande vitória para Portugal, tem pelo menos a vantagem de salvaguardar os seus legítimos interesses, que era precisamente o que estava em causa. Logo, justo é reconhecer que Freitas do Amaral não se enganou e o Governo também não. Estão os dois de parabéns. Porque o melhor governo é o que governa bem.


(*) in Público, 24 Novembro 2005
(**) “As declarações de Freitas do Amaral vão pesar nas negociações e estou convicto que prejudicarão Portugal” (Público, 24 Novembro 2005)

29 dezembro 2005

A fidelidade como prova de amor

Prado Coelho, inspiradíssimo, relata-nos no "Público" de hoje uma sua recente e atribulada passagem pelo Hospital de Santa Maria:

O tal corredor à esquerda de que já falei conduzia ao Serviço de Observações, que não me deixou boas recordações. Há uma espécie de princípio: "ó vós que aqui chegais abandonai tudo o que pertencia ao mundo." Um despojamento total. Tire a roupa: anotam peça a peça e amarrotam-na cuidadosamente em sacos que não têm pegas, para dar ao acompanhante que espera lá fora. Depois disseram: "Tire os óculos." Respondi: "Não tiro." A seguir o reló­gio. E segundo o regulamento, deveria entregar o telemóvel. Recusei. Por fim, o livro que levava comigo. Segundo o regulamento, não se pode ter livros! É assim que pretendem fomentar a lei­tura? Recusei entregar os Doidos e Amantes da Agustina Bessa-Luis, dizendo que da Agustina ninguém jamais me separaria.

Doidos e Amantes. Na saúde e na doença. Fidelidade absoluta a Agustina. Não há prova de amor mais genuína. Ou há?

Excerto de um livro não anunciado (276)

* Da persuasão retórica à persuasão hipnótica

A emoção na retórica

Apesar de ter identificado a nova retórica como teoria geral do discurso persuasivo “que visa ganhar a adesão, tanto intelectual como emotiva, de um auditório...” (*) e de nas suas principais obras - "Tratado da Argumentação", "O império retórico" e "Retóricas" - ter recorrido frequentemente a expressões tais como persuasão, discurso persuasivo, linguagem para persuadir e influenciar com a sua argumentação, Perelman nada ou quase nada nos diz sobre a persuasão. E contudo, é o próprio Perelman que reconhece a insuficiência da estrutura argumentativa quer para explicar quer para provocar a adesão do auditório: “quando se trata de argumentar, de influenciar, por meio do discurso, aumentar a intensidade de adesão de um auditório a certas teses, já não é possível menosprezar completamente, considerando-as irrelevantes, as condições psíquicas e sociais sem as quais a argumentação ficaria sem objecto ou sem efeito” (**). Não se trata pois de uma intencional ocultação dos factores “não intelectuais” sempre presentes no acto persuasivo e a que, de resto, alude logo nas primeiras páginas do seu Tratado da argumentação quando deixa bem claro que a adesão retórica é de natureza tanto intelectual como emotiva mas sim de uma opção pessoal que cedo anuncia e justifica: “nosso estudo, preocupando-se sobretudo com a estrutura da argumentação, não insistirá, portanto, na maneira pela qual se efectua a comunicação com o auditório” (***).

(*) Chaim Perelman, (1993), O império retórico, Porto: Edições ASA, p. 172
(**) Chaim Perelman, (1999), Tratado da Argumentação, S. Paulo: Martins Fontes, p. 16
(***) Ibidem, p. 6

27 dezembro 2005

O Presidente ideal

Parece que para algumas das candidaturas presidenciais, o ideal seria que o próximo Presidente da República de Portugal não percebesse nada de economia ou que, percebendo, fingisse que não percebia. E já agora, se não fosse pedir muito, que também jurasse não abrir a boca mesmo no caso da actuação do Governo vir a hipotecar o país. Ou muito me engano ou estão aqui estão a dizer que o ideal seria não haver Presidente.

Publicado n'O Eleito.

Excerto de um livro não anunciado (275)

Trata-se aqui, portanto, de descobrir se o orador está ou não a simular apenas um comportamento espontâneo, para fazer crer numa sinceridade que, de facto, não está presente no seu discurso. A tarefa, não sendo fácil, estará, contudo, ao alcance dos mais avisados, tanto mais que, segundo Goffman, “a arte de penetrar no esforço calculado de existir um comportamento não intencional por parte do indivíduo, parece mais desenvolvida do que a nossa capacidade de manipulação do comportamento próprio, de tal maneira que, seja qual for a fase alcançada pelo jogo de informação, a testemunha estará provavelmente em vantagem sobre o actor...” (*).

(*) Erwin Goffman, (1993), A Apresentação do eu na vida de todos os dias, Lisboa: Relógio D’Água, p. 19

25 dezembro 2005

Para lá das figuras de estilo

Esta recuperação da retórica, a partir dos anos 60, e do processo de persuasão de que é motor, contrasta com a conotação geralmente negativa que o discurso corrente atribui à retórica. Predomina a ideia de que o discurso retórico nada significa, apesar da sua eventual beleza formal. Nada mais representaria a retórica do que o bom uso de algumas figuras de estilo como a metáfora, a sinédoque, a metonímia. Mas, na realidade, há retórica sempre que um emissor procura convencer um receptor de algo.

in Fernando Cascais, (2001), Dicionário de Jonalismo, Lisboa: Editorial Verbo, p. 169

Os universais humanos e a persuasão

Emoções, gestos , medos e mitos são, segundo Donald E. Brown, quatro universais humanos. Compreende-se melhor, assim, a influência que desde sempre exerceram na comunicação persuasiva. Na retórica, portanto.

(À atenção de quem ainda pensa que a retórica só lida com o particular e concreto)

Cf. Lista de universais humanos, de Donald E. Brow in Steven Pinker, (2005), Tábula Rasa, Rio de Janiero: Companhia das Letras, pp. 588-589


A retórica e a busca da verdade

No tópico das emoções, Aristóteles deixa claro que não está interessado nas emoções para suscitar o preconceito, a piedade, a ira, etc., para influenciar a irracionalidade das pessoas. Ele concebe a retórica como uma busca da verdade, falando e discutindo.

Keith Oatley e Jenniffer M. Jenkins, (2002), Compreender as emoções, Lisboa: Instituto Piaget, p. 33

23 dezembro 2005

Excerto de um livro não anunciado (274)

Partindo da clássica distinção entre dois tipos de comunicação, expressões transmitidas e expressões emitidas, as primeras, predominantemente verbais e as segundas, predominantemente não verbais, Goffman - para quem o indivíduo, regra geral, se apresentará do modo que lhe é mais favorável - constata que “os outros poderão dividir em duas partes aquilo de que são testemunhas; numa parte, que é relativamente fácil para o indivíduo manipular à sua vontade, e que consiste sobretudo nas suas declarações verbais, e numa outra parte, relativamente à qual ele parece dispor de um menor controlo ou a que dá menos atenção, e que consiste sobretudo nas expressões que emite” (*). E se assim é, a maior ou menor discrepância frequentemente observada entre o que o manipulador transmite verbalmente e aquilo que ele emite num registo não verbal, constitui para o candidato a manipulado forte indício de que poderá estar perante uma mentira ou tentativa de manipulação. Logo, uma vez detectado tal indício, manter o mesmo nível de credulidade perante o orador em causa, será, de certa forma, sujeitar-se ao engano, por sua conta e risco.

Erwin Goffman, (1993), A Apresentação do eu na vida de todos os dias, Lisboa: Relógio D’Água, p.14

22 dezembro 2005

Picareta falante: humor com nome falso

Deve ser humor mas com nome falso esta coisa de chamar de picareta falante ao candidato que mais se tem remetido ao silêncio. Como diz a canção de António Variações (Humanos), "a culpa é da vontade"...

21 dezembro 2005

Nem sei o que dizer

... depois de ter lido uma coisa destas.

Obrigado LAURINDINHA.

20 dezembro 2005

A retórica das patadas

Na SIC-Notícias, Medeiros Ferreira acaba de recorrer a uma bruta metáfora para se referir a Mário Soares:

"O leão não está moribundo, o leão, como se viu, ainda está capaz de dar patadas..."

Por mim, faço justiça a Mário Soares: não vi patadas nenhumas.

No final do debate

Se não ficou claro quem esteve mais crispado, deu ao menos para perceber quem foi o mais agressivo.

Logo à noite

A testar durante o debate (?) de hoje na RTP:

- a hipótese de Soares, quando contrariado, ser tão ou mais crispado do que Cavaco.

19 dezembro 2005

A sublime afinação

Isto não era para dizer mas vem a propósito. No meu já distante passado de operário, uma das profissões que exerci foi a de mecânico de automóveis na Mercedes Benz, ali na Via Rápida, quem vai para o NorteShopping (Matosinhos). E lembro-me perfeitamente que já naquele tempo, uma vez concluída a reparação (válvulas rodadas, velas limpas, carburador afinado, etc.), punha o motor a trabalhar e ficava ali a testar, uma e outra vez, se tudo ficara bem feito. Acelera aqui, aperta acolá, torna a acelerar, desliga a ignição, volta a ligar, acelera de novo, enfim, "ouvir" o motor. Do meu trabalho, na altura, era da parte que mais gostava. E a verdade é que quase sempre havia um pequeno pormenor para corrigir ou afinar. Momento sublime, esse, o da afinação.

Tanto tempo depois, vejo que continuo o mesmo, mas agora nestas andanças. Escrevo um post, dou-lhe uma vista de olhos, corrijo a digitação, tiro uma vírgula, ponho um ponto final. E publico. Não gosto do "Preview". Publico mesmo. E vou ver como ficou. Não ficou mal, penso. E saio do computador. Posso voltar uma ou duas horas depois, talvez só passadas oito ou nove horas. Ou apenas nos dias seguintes. Não interessa. Volte quando voltar e seja que número de vezes for, se reparo numa qualquer falha ortográfica ou expressão menos feliz, "deleto", substituo, encurto, alongo, corrijo. Imediatamente. Talvez não seja capaz de eliminar um post inteiro. Isso, acho que não. Mas para emendar, reduzir ou aumentar o respectivo texto... nem olho para trás. E, regra geral, também não deixo qualquer nota a explicar porque o alterei. Mas não é por desrespeito para com os leitores. Pelo contrário. Corrijo porque acho que merecem melhor. Fica então o aviso: em princípio, os meus posts só "estabilizam" vinte e quatro horas depois. Logo, é perfeitamente possível que surjam, nesse intervalo, em diferentes versões, até se ajustarem ao "figurino" definitivo. Foi precisamente o que sucedeu com o meu post anterior.

18 dezembro 2005

Provedor "ouve" a blogosfera

Ainda não há muito tempo, um leitor que quisesse protestar contra o seu jornal, tinha que telefonar ou escrever para o Director e ficar na expectativa de ver ou não a sua queixa publicada. Em qualquer dos casos, a última palavra pertencia sempre ao Jornal. Se o reparo do leitor lhe fosse inconveniente, por exemplo, em termos de imagem, o protesto corria o risco de não chegar a ver a luz do dia.

Com a blogosfera tudo mudou. O leitor tem acesso imediato à edição e pode, por isso, livremente, tornar público o seu descontentamento, criticar ou apresentar sugestões, relativamente às práticas jornalísticas deste ou daquele órgão de informação. Desapareceu, portanto, a possibilidade do jornal em causa silenciar a opinião do leitor. É certo que, por agora, ainda lhe resta a hipótese de o ignorar, de o deixar a falar sozinho, de se fingir de morto, mas estou convencido que, à medida que a comunidade blogosferica (ou qualquer futura realidade mais ou menos semelhante) se for consolidando, irá também aumentando a velocidade e a dimensão da partilha de opiniões e reacções dos respectivos leitores.

Não sei o que o actual Provedor do JN pensa disto, mas honra lhe seja feita, desde sempre deu a devida atenção às críticas ou comentários dirigidos ao Jornal de Notícias na blogosfera.
Este seu excelente artigo de hoje (*) é só um exemplo. Para quem queira acompanhar mais de perto o assunto, fica aqui a notícia do JN que critiquei no meu post Título enganoso.


(*) Parece óbvio, contudo, que a expressão "os envolvidos" não implica "todos os envolvidos". Exemplos: o uso de expressões tais como “os portugueses lêem pouco” ou “os alunos da Turma B são muito aplicados” ou ainda “os amigos são para as ocasiões”, não reporta, necessaria e respectivamente, a todos os portugueses, todos os alunos da Turma B ou a todos os amigos (embora tal possa sugerir). Também não se vislumbra qualquer diferença, nem de significado nem de sentido, entre a expressão "os envolvidos" e o termo "envolvidos". Em princípio, ambos significam a mesma coisa, quer quando denotam a parte quer quando denotam o todo. Será que a Carla Quevedo nos pode dar aqui a sua autorizada ajuda?

Excerto de um livro não anunciado (273)

Como minuciosamente descreve Goffman, “pode querer que eles façam uma grande ideia a seu respeito, ou que pensem que ele faz deles uma grande ideia, ou que se dêem conta do modo como ele realmente os sente, ou que não cheguem a qualquer impressão demasiado precisa; pode querer garantir uma harmonia suficiente para que a interacção se mantenha, ou, pelo contrário, enganá-los, desorientá-los, confundi-los, desembaraçar-se deles, opor-se-lhes ou insultá-los” (*). Ao orador, interessará, pois, controlar o comportamento dos que o escutam, especialmente no que respeite ao modo como lhe respondam ou como o tratem. Como chegar a esse controlo? Sem dúvida, exercendo maior ou menor influência sobre a definição que os outros formulam, para o que se exprimirá de maneira a proporcionar-lhes a impressão que os levará a agirem voluntariamente de acordo com a sua própria intenção ou plano. Resta saber se ele próprio mantém um controlo total sobre o acto de se expressar.

(*) Erwin Goffman, (1993), A Apresentação do eu na vida de todos os dias, Lisboa: Relógio D’Água, p.14

17 dezembro 2005

O candidato escolhido

"Eu não sou o candidato do partido socialista", repete agora Mário Soares depois de ter garantido que só se candidatava por ter recebido o apoio do Partido Socialista e defender até que Manuel Alegre deveria sair do PS por não ter sido o escolhido pelo partido.

Publicado n'O Eleito.

Excerto de um livro não anunciado (272)

Seguindo de perto o ponto de vista de Goffman, teremos de dizer que é através da definição de situação de que nos fala, que os participantes de um auditório concreto fazem uma primeira formulação do que o orador espera deles e, igualmente, do que poderão eles esperar do orador. A maior ou menor segurança dessa formulação dependerá, é certo, da quantidade de informação disponível sobre o orador, mas por maior que esta seja, não será nunca possível prescindir de um complexo jogo de inferências, a partir daquilo que o orador transmite. E é aqui que podemos situar o ponto crítico da definição da situação. É que o orador, em função do seu particular interesse ou objectivo, pode mentir, recorrer a um discurso fraudulento, à dissimulação, tanto mais que também ele faz as suas inferências sobre o auditório que tem à sua frente, além de nunca ser descartável a hipótese de facilitar ou impedir intencionalmente o processo inferencial dos seus interlocutores.

15 dezembro 2005

Silêncios intrigantes

Alguns dos meus blogues preferidos entraram em silêncio, o que muito lamento. Primeiro foi o Terras, depois o Homem, mais tarde o Misantropo e até a Bomba (*), imagine-se, está há mais de oito dias sem nos dar a mínima atenção. Onde já se viu? O que se está a passar? Há silêncios que dizem tudo e outros que não dizem nada. Mas o destes apreciados blogues não se sabe muito bem o que dizem. Razão tem Tito Cardoso e Cunha, no seu mais recente livro "Silêncio e Comunicação-Ensaio sobre uma retórica do não-dito"(**):

Há silêncios que não são interpretáveis nem são comunicativos. São apenas, ou diferentemente, silêncios intrigantes e indecifráveis eventualmente com a sua dose de unheimlich ou inquietante estranhidade

(*) Inicialmente pensava que o Jornalismo e Comunicação também estava inactivo há vários dias, mas deve ter sido algum problema técnico pois já confirmei que continua activo. Ainda bem.
(**) Colecção Media e Jornalismo, Editora Livros Horizonte, Lda., 2005


14 dezembro 2005

Raciocínio lento

Excerto de um livro não anunciado (271)

Este modo de olhar a mentira, pressupõe, naturalmente, um juízo de vincada negatividade ético-social e discursiva. Mas a questão que agora se coloca é a de saber se, ainda assim, poderemos ignorar o papel que a mentira desempenha ao nível praxis. Uma primeira advertência, a este respeito, parece vir de Simel, para quem “o valor negativo que no plano ético tem a mentira, não deve enganar-nos sobre a sua positiva importância sociológica, na conformação de certas relações concretas” (*). Ora foi precisamente a partir de uma perspectiva sociológica que Goffman estudou a estrutura dos encontros em sociedade, aqueles em que “as pessoas se vêem na presença física imediata umas das outras” (**), pondo em marcha estratégias de relacionamento que pouco devem a uma atitude de sinceridade integral. Para este autor o factor-chave na estrutura de tais encontros é a manutenção de uma definição da situação que deve ser expressa e sustentada perante uma multiplicidade de rupturas ou perturbações potenciais. Daí a sua analogia com a dramatização teatral, já que “os indivíduos que conduzem a uma interacção cara a cara no palco de um teatro têm que dar resposta às mesmas exigências de base que encontramos nas situações reais” (***). É quanto basta para se vislumbrar aqui não só a possibilidade da mentira mas também a sua própria relativização, quando encarada no concreto contexto social em que ocorre.

(*) Cit. in Carmen, M., "La máscara y el signo:modelos ilustrados", in del Pino, C. (Org.), (1998), El discurso de la mentira, Madrid: Alianza Editorial, p. 81
(**) Goffman, E., (1993), A apresentação do eu na vida de todos os dias, Lisboa: Relógio D’Água, p. 297
(***)
Ibidem

13 dezembro 2005

Louçã em grande forma

Tomando como referência o debate com Manuel Alegre, reconheço que Francisco Louçã traz a lição estudada. Sabe do que fala. É claro. É objectivo. É preciso. É fluente. Analisa, critica e opina. Nestas condições seria sempre mais fácil expô-lo ao ridículo, no caso de faltar à verdade, de dizer asneiras ou de simplesmente manipular o debate. Mas não é o que acontece. Onde os seus adversários generalizam, ele especifica. Onde os seus adversários não se lembram, ele recorda-se perfeitamente. Onde os seus adversários se refugiam na abstração, ele concretiza. Louçã está em grande forma. Revela energia física e agilidade de raciocínio. E como se tudo isso não bastasse é, provavelmente, o único candidato que está tão à vontade na economia como no discurso. Sinceramente, cada vez percebo menos porque é que não me convence.

Publicado n'
O Eleito.

12 dezembro 2005

Cura milagrosa?

Mário Soares foi ontem agredido em Barcelos (felizmente sem consequências) por um ex-combatente no Ultramar de outras memórias. Um traumatizado, disseram alguns. Um atrasado mental, sentenciou Mário Soares, logo acrescentando que precisamente por isso não o iria processar. Hoje, porém, já admite vir a processá-lo. Das duas uma: ou o candidato muda de opinião da noite para o dia, ou o ex-combatente curou o seu atraso mental em 24 horas.

Publicado n'O Eleito.

Onde ele se foi meter

Acabo de ler aqui que a Sede de Candidatura de Manuel Alegre, em Aveiro, fica na Rua do Senhor dos Aflitos. Onde ele se foi meter...

11 dezembro 2005

Igualdade é só bandeira

Tenho dúvidas, muitas dúvidas, se qualquer outro contribuinte se poderá gabar de ver o problema dos seus impostos num país estrangeiro ser resolvido pelo Primeiro Ministro português. Até pode acontecer, mas tenho dúvidas, repito, muitas dúvidas. Mas a acreditar no Expresso deste sábado, o nosso Nobel José Saramago só não se gaba se nao quiser. Pediu a intervenção de José Sócrates que falou com José Luiz Zapatero e pronto, o fisco espanhol vai deixar Saramago em paz. Tudo certo. Pensando bem, a Igualdade é só bandeira, não é nação.

Ética de circunstância

Não sei se Mário Soares seria a pessoa mais indicada para criticar Manuel Alegre por não ter acatado a escolha presidencial do PS, sabendo-se, como se sabe, que a sua mandatária da juventude não só virou as costas ao candidato escolhido pelo seu partido, como ainda subiu para o palco de uma candidatura concorrente. A tanto não se atreveu Alegre, mas mesmo assim, lá serviu de alvo a mais uma ética de circunstância. É campanha eleitoral, ninguém leva a mal.

Publicado n'O Eleito.

10 dezembro 2005

Excerto de um livro não anunciado (270)

Há por isso que fazer uma distinção que, além de se revestir da maior importância para a compreensão do fenómeno da manipulação na retórica, parece vir confirmar a perspectiva que aqui vimos assumindo e que outra não é, senão a de se considerar que a responsabilidade por tal manipulação deve ser repartida e co-assumida pelo manipulador e pelo manipulado. É que uma coisa é a mentira, outra, o engano. Se há engano, é porque houve mentira, mas – e este é o ponto que pretendemos salientar – da mentira não tem que, obrigatoriamente, decorrer o engano. Mentir é um propósito, uma intenção. Enganar é algo mais, é obter o resultado ou o efeito intentado. A mentira é do foro do mentiroso. O engano está sobe a jurisdição do enganado. O mentiroso pode mentir sempre, mas só engana quando alguém se deixa enganar. Há sempre, portanto, uma divisão de responsabilidades na manipulação da retórica e, de modo algum, aquele que escuta pode furtar-se ao ónus de detectar as possíveis transgressões ou rupturas do contrato de sinceridade que torna possível tanto a retórica como, afinal, toda e qualquer outra forma de comunicação. Como diz Lozano, “que a mentira possa supor uma ruptura do contrato fiduciário corresponde unicamente à vontade do destinatário ou à sua interpretação, sempre regida pelo ‘crer’ que é, não em vão, uma modalidade ‘subversiva’, já que se pode crer tanto no possível como no impossível, no verdadeiro como no falso. E, porque não, também na mentira”(*).

(*) Jorge Lozano, "La mentira como efecto de sentido", in Carlos Castilha del Pino, (Org.), (1998), El discurso de la mentira, Madrid: Alianza Editorial, p. 140

O Expresso e a manipulação "de referência"

Hoje, na entrevista a Guilherme de Oliveira Martins:

Expresso-Prepara-se, então, para ser incómodo para este Governo?
G.O.M.-Preparo-me para ser incómodo para todos os Governos.

Ignorando (ou fingindo ignorar) uma notória diferença de sentido entre a pergunta e a resposta, o Expresso não hesita em publicar a toda a largura da página o seguinte título:

Guilherme de Oliveira Martins, presidente do Tribunal de Contas
"Vou ser incómodo para o Governo"

Mas que dizer desta "habilidade" de chamar para título uma afirmação que não foi proferida pelo entrevistado? Ainda por cima, com o refinado desplante de a colocar entre aspas. Haverá no jornalismo português melhor exemplo da manipulação "de referência"?

09 dezembro 2005

Excerto de um livro não anunciado (269)

Resta analisar a quarta condição, ou seja, a intenção do sujeito que fala em ser tomado como sincero por quem o escuta. De certa forma, temos aqui a alusão a uma preocupação muito em voga nos nossos dias que é a de manter a imagem e que constitui um filão sistematicamente explorado pela publicidade mediática. Manter a imagem, claro está, mas somente quando dela se possam retirar alguns dividendos, mesmo quando estes se restrinjam ao mais elementar nível do reconhecimento pessoal. Mas não é seguramente este tipo de reconhecimento que, em primeira linha, busca aquele que quer fazer passar uma mentira, na retórica. Os seus objectivos são bem mais pragmáticos: ele pretende, antes de mais, valer-se da credibilidade de que goza para mais fácil e eficazmente fazer aceitar como verdadeiro aquilo que sabe ser falso. Estamos aqui, por assim dizer, numa aplicação pela negativa, da ligação acto-pessoa de que nos fala Perelman. O interlocutor que fica com a sensação de que está a escutar alguém cuja integridade moral é inatacável tenderá a deduzir que os seus actos são igualmente íntegros. Confia na boa-fé de quem lhe fala, age por sua parte com real boa-fé e predispõe-se a aceitar naturalmente como verídico tudo o que lhe é dito por essa mesma pessoa. Torna-se assim presa fácil da mentira, pois regra geral, só mente quem consegue aparentar que diz a verdade. E ao conseguir manter a sua imagem de credibilidade, mesmo mentindo, o mentiroso, como que prepara, inclusivamente, o terreno para novas mentiras, reforçando no seu interlocutor uma presunção de veracidade para todos os seus futuros discursos, sejam eles falsos ou verdadeiros. Com efeito, o mentiroso que é desmacarado, não só vê fugir-lhe os efeitos que da sua mentira pretendia retirar como terá dificuldades acrescidas, no futuro, em se fazer acreditar, mesmo quando pronuncie um discurso verídico, pois cabe aqui lembrar o provérbio cesteiro que faz um cesto, faz um cento.

08 dezembro 2005

A retórica da comparação

À hora do almoço, vi o Francisco Louçã na televisão a comparar empolgadamente (como de costume), uma qualquer declaração feita ontem pela secretária de estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, com o que terá um dia sido afirmado por Salazar. Servindo-se da sua melhor voz de teatro, lá começou a ler - sabe-se lá de donde - o que disse um e o que disse o outro. Naturalmente que o deliberado propósito era o de achincalhar a secretária de estado americana, procurando identificar o seu pensamento com o de Salazar. Parecendo-me que o expediente era um tanto ou quanto demagógico, mudei de canal. Mas já me arrependi. Gostava de ter presenciado toda a "cena". Só para tirar uma dúvida: o que é que Louçã realmente conseguiu com tão estapafúrdia comparação? denegriu Condoleezza Rice ou branqueou Salazar?

Publicado n'O Eleito.

O regresso das "forças de bloqueio"

Não tenho a menor dúvida de que o modo como o ministro da Justiça, Alberto Costa, foi recebido no VII Congresso dos Juízes, terá sido, no mínimo, descortês ou pouco educado, e logo por parte de uma classe tradicionalmente muito ciosa de se fazer respeitar. Foi, pois, com a maior naturalidade que li no Expresso da passada semana, a crítica de Fernando Madrinha ao comportamento dos senhores magistrados, em especial ao braço de ferro que vêm mantendo com o ministro, e que, no entender do prestigiado jornalista, só dificulta o diálogo que eles próprios reclamam. O que já me surpreendeu foi esta parte final do seu comentário:

E mais sublinham a ideia de que, no fundo, o que pretendem é impedir qualquer mudança na Justiça, ainda que dizendo o contrário. Ou, então, querem substituir-se ao próprio Governo no direito que lhe assiste, pela lei e pelo voto, de fazer as reformas que defende para o sector. Haverá algo de mais parecido com uma "força de bloqueio"?

Em que ficamos afinal? Depois de:

1) Quase crucificarem Cavaco Silva por um dia ter usado a expressão "forças do bloqueio".
2) O próprio já ter admitido que talvez não a devesse ter usado.
3) O candidato Manuel Alegre afirmar que dormirá descansado se Cavaco for eleito, só não quer é que ele continue a "ver" "forças de bloqueio" na sociedade portuguesa.

... eis que surge agora um jornalista tão qualificado como Fernando Madrinha a recuperar a famosa expressão de Cavaco, classificando os magistrados como "forças de bloqueio" ao Governo PS. É a vida, diria Guterres. Outros dirão: as voltas que a vida dá. Mas também não exageremos. Pode muito bem acontecer que se trate de mera oscilação semântica, tão frequente na apreciação política. O que me interrogo é se Cavaco Silva ainda precisaria de tão insuspeito apoio.


Publicado n'O Eleito.

A "cabalização" da Justiça

João Morgado Fernandes estranha, neste seu editorial, que o Sr. Procurador - “alguém com formação em direito e ainda para mais com responsabilidades na justiça portuguesa” - tenha proferido semelhante “afirmação dubitativa sobre a inocência de pessoas que nem arguidas são” e ainda lhes assaque “o ónus da prova dessa mesma inocência”. Neste aspecto não posso estar mais de acordo com o João: se a inocência se presume, não se vê como “alguém com formação em direito e ainda para mais com responsabilidades na justiça portuguesa” pode exigir ao inocente provas de que está inocente. O mesmo se diga sobre a “insinuante” expressão “Se continuam a afirmar a sua inocência” que, face à grave dúvida que deixa no ar, não deve ser publicamente proferida (mesmo por quem de tal dúvida comungue).

Mas as criticadas declarações do Sr. Procurador têm uma segunda parte, aquela em que se refere à denúncia da cabala, que não pode ser metida no mesmo saco como o terá feito o distinto editorialista. E aí creio que o Sr. Procurador já tem a razão de seu lado, quando “endossa” ao PS ou a Ferro Rodrigues ou a qualquer outro titular da acusação de cabala, o ónus de lhe fazer chegar os elementos em que se fundamentam. Nem poderia deixar de ser assim. Imagine-se que a Procuradoria da Republica passava agora a abrir uma investigação por cada denúncia de cabala que lhe chegasse ou que fosse publicamente anunciada, sem cuidar previamente da sua maior ou menor consistência. Alguém acredita que a “cabalização” da Justiça faria de Portugal um país mais justo?

PS contra Soares?

Manuel António Pina insurgia-se ontem na última página do JN contra a decisão do nosso Ministério de Educação de reduzir de cinco para três os exames nacionais, no final do Ensino Secundário, particularmente o facto do ministério ter "decretado" que os dois exames nacionais dispensáveis são o de Português e Filosofia. E com toda a razão. Além de que não se percebe muito bem como é que um governo do PS toma uma medida destas precisamente na altura em que o seu candidato presidencial (de cuja comissão de honra é membro Manuel António Pina) tanto insiste na supremacia das Humanidades sobre a Economia...

.Publicado n'O Eleito.

07 dezembro 2005

O que procura o Sr. Procurador?

O que procura dizer o Sr. Procurador quando admite publicamente que a investigação da Casa Pia "não foi a ideal"? Que foi incompetente? Que foi injusta? Que foi irresponsável? Claro que não. A mensagem é antes a de que "foi o melhor que se pôde fazer". O que em termos de avaliação, como se sabe, não quer dizer absolutamente nada. Mas cada um invoca as razões que possui. Acredito por isso que se o Sr. Procurador fez uma afirmação tão trivial foi porque, em consciência, não tinha outra melhor. E isso sim é que é triste.

Retórica Multi-usos (4)

"O pavor da retórica - escre­ve o professor Tito Cardoso e Cunha - é o que mais atormen­ta qualquer discurso político hoje em dia. Não há adjectivo mais avassalador para qualificar o discurso do adversário do que esse". Mas, afinal, sem recurso à retórica e à argumentação não há forma possível de fundamentar as deliberações no campo da política, do direito ou da educação.

Mário Mesquita, Público, 04 Dezembro 2005

05 dezembro 2005

Retórica Multi-usos (3)

A tal tipologia que separava as pessoas segundo um outro sexo que nada tinha a ver com o pube, não era afinal retórica ao pequeno-almoço.

Lídia Jorge, in "Notícia da Cidade Silvestre"

04 dezembro 2005

O que ele diz

Sobre tudo e sobre nada. Este blogue já existe desde Julho de 2003, tem um nome do caraças, alta qualidade analítica e só agora é que o descobri? Por onde tenho andado? E ainda por cima diz que o Retórica e Persuasão é um blogue precioso. Não acreditam? É só clicar.

O que seria de nós sem partidos?

Um candidato presidencial mal colocado nas sondagens acusou o Prof. Cavaco de «ter vergonha do próprio partido». Bom, espero que assim seja, seria um traço bem simpático. Prosseguindo a usual cantiga da «defesada democracia», Manuel Alegre diz, contudo, que vê «gente muito medíocre à frente dos partidos». Ora viva! Parece que meio mundo está a acordar.

Paulo Cunha Porto, O Misantropo Enjaulado, 04.12.2005

Isto é o que chamo de "post bem disposto". De facto, do jeito que os partidos vão (e que até Alegre denuncia), por certo que "os portugueses" (quantos são... quantos são?) já nem se admiram que Cavaco tenha vergonha do seu próprio partido. Talvez estranhem bem mais que Soares não tenha vergonha do seu. Mas, caro Paulo, daí a defender o apartidarismo, parece-me que vai uma grande distância. É claro que precisamos de melhores forças partidárias mas não vejo como pode a democracia contemporânea sobreviver sem partidos. Mesmo num país pequeno como é o nosso, imagine o "chinfrim" de 10 milhões de "independentes" a puxarem cada um para seu lado. E depois não se esqueça: sem partidos não haveria, sequer, apartidários. Agora diga-me: o que seria de nós?

Publicado n'O Eleito.

Retórica multi-usos (2)

Em lugar de andar com retórica aqui e acolá, vou continuar a empenhar-me em explicar aos portugueses porque razão decidi candidatar-me à Presidência da República. Vou perder, perdão, ganhar todo o meu tempo a explicar essas razões aos portugueses

Cavaco Silva, Entrevista à TVI, 14 Novembro 2005

(ao mesmo tempo que afirmava que uma das características mais importantes de um Presidente da República é «a palavra»)

03 dezembro 2005

Jornalismo de facto

Se esperamos de um jornalista que descreva e subscreva, também sabemos que ele terá de escolher o que diz e como diz. Não há jornalismo neutro.

Helena Roseta, Visão, 01 Dezembro 2005

Mas por muito estranho que pareça, ainda há muito boa gente que discorda disto.

Retórica multi-usos (1)

Deixemos de parte formalismos circuns­pectos ou a habitual retórica do «funcionamento normal da justiça».

António Mega Ferreira, Visão, 01 Dezembro 2005, p. 15

O discurso de fumo

Ao responder, à pergunta de uma jornalista, que o novo aeroporto vai criar 56 mil novos postos de trabalho, sem deduzir ou sequer mencionar os que irão desaparecer com o futuro encerramento da Portela, o Ministro das Obras Públicas produziu aquilo a que podemos chamar um discurso de fumo cuja primeira vítima terá sido a própria jornalista. Daí que Rui Branco muito oportunamente questione:

é sério o trabalho de um jornalista que não é capaz de despistar de imediato esta dúvida absolutamente linear (novos postos de trabalho são mais postos de trabalho?) e a que se chega automaticamente?

Concordo com o Rui: o aprofundamento da nossa vivência democrática passa também por um jornalismo mais preparado para detectar a "retórica negra" de alguns governantes.

De boca aberta

Deu ontem à noite na TV e vi com os meus olhos: Mário Soares comendo de boca aberta enquanto respondia aos populares que o interpelavam durante uma acção de pré-campanha.

Afinal a verdadeira diferença para Cavaco não é a de que este come de boca aberta e Soares não, pois ambos o fazem. A verdadeira diferença é que enquanto o primeiro come de boca aberta calado o segundo nem a comer se cala. É tudo uma questão de ângulo ou enquadramento.

Nota:
Este post não é para levar a sério (seria de muito mau gosto e até ridículo eleger detalhe tão fútil como relevante numa eleição presidencial)


02 dezembro 2005

A festa das manifestações

Os agricultores, creio que de Mirandela, estão ali a manifestar-se numa reportagem que a TVI acaba de pôr no ar durante o seu telejornal. Manifestam-se contra não sei quê, que não cheguei a perceber, mas que não me custa imaginar. Manifestam-se contra tudo ou contra quase tudo, porque quase tudo parece estar errado na nossa agricultura. Mas o ponto não é esse. Num regime democrático, a coisa mais natural deste mundo é que os agricultores, tal como os cidadãos de qualquer outra classe ou grupo de trabalhadores/empreendedores saiam à rua para lutar pelos seus direitos. O que não acho nada natural é que os manifestantes nos queiram persuadir da situação dramática em que vivem ao som de umas festivas mas contraditórias pancadas de bombo, cantando e dançando pela rua fora, exibindo uma alegria algo carnavalesca e, nalguns casos, aproveitando até as câmaras de televisão para dizerem adeus lá para casa. Com franqueza: o que pode ganhar uma causa séria com tanta palhaçada?

Pague agora e segure-se depois

Até aqui (ou melhor, até, ontem) nada de grave acontecia ao segurado que, por qualquer motivo, não pagasse o seu seguro de automóvel na respectiva data de vencimento anual da apólice. Não pagava mas continuava seguro sem qualquer restrição ou reserva por mais 30 dias, findo os quais, então sim, a apólice anulava automaticamente. O Decreto-Lei n.º 122/2005 de 29 de Julho veio, porém, alterar este regime, fixando novas regras de cobrança dos recibos de seguros. Numa blogosfera de automobilistas, imagino que tenha algum interesse conhecer as principais alterações introduzidas por esta "nova lei de cobranças" a qual, desde logo, distingue entre seguros novos e seguros já em vigor numa seguradora.

No caso dos seguros novos celebrados a partir de 01 de Dezembro de 2005, o princípio do "segure-se agora e depois pague" deu lugar ao princípio do "pague agora e segure-se depois". Só há seguro depois do prémio ter sido pago. Não foi uma boa notícia para os consumidores, não senhor, mas creio que a mudança se fica a dever a um conjunto de pertinentes razões que ilustrarei com um só exemplo: a ninguém passará pela cabeça a quantidade de indivíduos que circulam com o famoso "certificado de seguro provisório" (válido por 30 dias) sem nunca terem pago qualquer recibo de prémio, bastando-lhes para isso andar de seguradora em seguradora a repetir tal expediente.

Já quanto aos seguros que transitam de anos anteriores, parece que o que muda, ao menos do ponto de vista do segurado, é relativamente pouco: a seguradora continuará a enviar-lhe o aviso de pagamento com 60 dias de antecedência sobre a data limite de pagamento e tal como até aqui, se até essa data limite o pagamento do recibo não tiver sido efectuado, a apólice ficará imediatamente anulada. Então o que é que mudou? Bem vistas as coisas, o que mudou foi apenas uma data, no caso, a data limite de pagamento que, por uma vez, será antecipada 30 dias e assim se manterá enquanto a apólice estiver em vigor.

Dúvida fatal: isto é informação ou retórica?

01 dezembro 2005

O transplante facial e a retórica

Há precisamente dois anos e dois dias, iniciei o meu post "Vem aí o homem sem rosto?" com a pergunta :

será tão aterradora como parece a anunciada hipótese dos médicos passarem em breve a transplantar também rostos de cadáveres para seres vivos?

Se a pergunta se justificava já nessa altura em que o transplante facial não passava ainda de mera hipótese anunciada, mais pertinente parece mostrar-se agora que acaba de se tornar realidade, segundo esta notícia do JN de hoje:

"Face Humana Transplantada

Pela primeira vez foi transplantada uma face humana. A cirurgia foi realizada em França, no passado fim de semana, mas apenas é sabido que a paciente foi uma mulher de 36 anos, que perdeu o nariz, a boca e o queixo, na sequência do ataque de um cão. Uma operação deste tipo tinha, há meses, sido anunciada como intenção por cirurgiões norte-americanos, mas os franceses anteciparam-se. De qualquer modo, os procedimentos cirúrgicos beneficiam da investigação que vem sendo feita em diversos países.
Os médicos afirmam que a operada não se irá parecer com o doador, nem com ela própria antes de ser desfigurada, desconhecendo-se ainda o processo de "composição" da nova expressão facial. Também se desconhece o impacto psicológico dos resultados.
A operação implica a retirada da pele, veias e gordura de um dador e obriga a uma terapêutica à base de imunossupressores, tal como noutros transplantes. No período pós-operatório, há o risco de os vasos sanguíneos do tecido doado formarem coágulos.
Questões éticas também têm envolvido este procedimento cirúrgico. Se bem que as informações indiquem que a face foi retirada de um dador morto, médicos indicam que este tipo de transplante terá de ser feito com base na face de um dador cujo coração ainda bata, antes de ser desligado o ventilador nos cuidados intensivos em que se encontre."


Preparemo-nos, então, porque vem por aí muita retórica. Mas dizer que vem por aí muita retórica nem por sombras é sugerir que a lógica não será para aqui chamada. Pelo contrário, a lógica é imprescindível a qualquer processo de argumentação, incluindo o que tem lugar na retórica. Só a lógica disciplina o nosso raciocínio e nessa medida, cauciona (ou não) a particular forma como se chegou a determinada conclusão. Digo que vem aí muita retórica e não apenas lógica, porque quando um assunto interessa a mais alguém, maxime, a toda a comunidade (e não apenas a uma suposta elite de sábios), não basta ter as melhores razões, não basta usar argumentos formalmente válidos, não basta alegar a evidência de uma ideia ou proposta. É preciso também saber persuadir os (con)cidadãos quanto à bondade da solução que se defende. Quanto mais não fosse, porque na vida em comum, todos têm legitimidade para procurar convencer o outro sobre a valia das suas ideias, das suas convicções e das suas propostas, se honestamente as vêem como as que melhor respondem aos interesses da comunidade.

Que venha a retórica, mas uma retórica crítica, sem infracções lógicas (formais ou informais) e com interlocutores de boa-fé, que se preocupem em persuadir a outra parte daquilo em que acreditam mas sem qualquer cedência ao artifício, ao truque, à deturpação ou engano (*). Será a melhor forma de reflectirmos sobre as questões éticas, humanas e sociais que o incremento desta revolucionária técnica de transplante facial vai seguramente levantar. É um ideal, claro. Mas alguma coisa valeria a pena sem um ideal?

(*) De resto, nenhum destes desvios argumentativos consta de qualquer compêndio de retórica.