30 novembro 2005

Porque é que umas Universidades são mais procuradas do que outras?

O Prof . António Fidalgo põe em crise esta ideia feita: a de que a procura de um curso tem forçosamente que ver com a qualidade dos respectivos professores. Referindo o artigo de Andrew Hacker, segundo o qual as universidades americanas são "mais procuradas pelo prestígio do que pela excelência pedagógica dos seus docentes", o Professor conclui ainda que o conhecimento destes dados obriga, pelo menos, a fazer também aqui em Portugal a distinção e a separação entre a procura de um curso e a qualidade dos respectivos professores. Nada mais certo, nada mais justo: a procura não é tudo.

29 novembro 2005

Excerto de um livro não anunciado (268)

Como assinala Castilla del Pino (*), para que estejamos perante uma mentira é necessário que quem fala, preencha as seguintes condições:

a) Ter consciência do que é o certo
b) Ter consciência de que não é o certo que diz
c) Ter a intenção de enganar
d) Ter a intenção de ser considerado sincero


Como se pode ver, as três primeiras condições configuram uma situação de má-fé perante o interlocutor, na medida em que o sujeito que fala tem consciência de que não diz a verdade e ainda assim, fá-lo, porque deliberadamente pretende enganar aquele a quem se dirige. Note-se que, ao contrário do que pode parecer, as duas primeiras condições são por si só insuficientes para que se possa caracterizar uma situação de má-fé. Basta pensar no caso do professor que enuncia aos seus alunos uma solução falsa (apesar de conhecer a verdadeira) com o único propósito de testar o saber dos seus alunos ou neles estimular o espírito de descoberta, na resolução de um dado problema. Logo, apenas a intenção de enganar torna a acção de dizer o falso, inequivocamente censurável.

(*) Castilla del Pino, "Los discursos de la mentira", in Castilla del Pino, C. (Org.), (1998), El discurso de la mentira, Madrid: Alianza Editorial, p. 164

28 novembro 2005

Mau sinal

E fica-nos a todos a sensação da inutilidade democrática e da vacuidade da eleição presidencial.

António Barreto, Público, 27 Novembro 2005

Respeitabilidade

O perigo da intolerância democrática

1.
Não procede o (meu) argumento de que sendo a Constituição revisível, não faz sentido proibir, à partida, uma crítica ou um ataque à democracia – diz o Pedro Santos Cardoso. Mas eis que, quando já me preparava para ripostar, leio imediatamente a seguir que, afinal, sempre reconhece que uma crítica à democracia é perfeitamente possível. Bom. Se há coisa a que, numa argumentação, qualquer das partes está obrigada, é a respeitar a lógica do seu próprio raciocínio. Sigamo-lo então. Se o Pedro admite que uma crítica à democracia é perfeitamente possível, então terá igualmente de admitir que não faz sentido proibir, à partida, uma crítica à democracia. Isto parece-me tão claro que, salvo melhor opinião, desqualifica, por si só, a alegação de que o meu argumento não procede. Porque, insisto, estamos aqui ainda no domínio da pura lógica argumentativa.

2.
Reparo, contudo, que, ao mesmo tempo que admite a crítica à democracia, o Pedro escreve que “só o ataque não é permitido”. Há então nesta parte algum equívoco de recepção pois no meu post, mobilizei os dois termos, “crítica” e “ataque”, numa relação de total sinonímia. Um e outro referem-se apenas a vozes discordantes (e não a bombistas com cinto de explosivos, por exemplo) que se apresentam no domínio da liberdade de expressão e discussão doutrinal. E foi também nestes precisos termos que o primeiro dos três requisitos, preconizados por Ralf Dahrendorf como pilares da democracia, me suscitou algumas reservas.

3.

O facto de duvidar de que a intolerância para com os adversários da democracia seja a melhor maneira de defender e preservar esta última, não é a mesma coisa que advogar a impunidade de seja quem for (e não apenas os adversários da democracia) no caso de infringir a lei. O questionamento crítico do texto constitucional não desobriga ninguém do seu cumprimento enquanto estiver em vigor, nem tal é minimamente sugerido no meu post. Não se trata por isso de radicalizar a tolerância como valor absoluto mas, pelo contrário, de denunciar o carácter absoluto (e acrítico) da preconizada intolerância para com os adversários do regime. E, já agora, permito-me discordar também de quando afirma que “o argumento de que o ataque à democracia não deveria ser proibido, uma vez que a Constituição é revisível” teria que ser levado “às últimas consequências” (*).

4.
O que esse meu argumento teria que levar era à consequência que foi invocada e para a qual se mostra idóneo: a de mostrar que se a própria lei fundamental de um país democrático é revisível é porque a democracia que a enforma se oferece ao questionamento. Até porque se um regime democrático não for receptivo a sucessivos melhoramentos e actualizações ao mundo da vida, mais tarde ou mais cedo, estará condenado. O mesmo se diga se não possuir argumentos para se defender e tiver que enveredar pela intolerância para com os seu críticos ou adversários, quiçá, pela perseguição. A intolerância e a perseguição ideológicas são marcas distintivas da ditadura, não da democracia. E se, como reconhece Ralf Dahrendorf, até o primado da lei é susceptível de levar a uma ditadura sob a forma de democracia, por maioria de razão, o mesmo pode vir a acontecer se a intolerância para com os adversários se institucionalizar, como parece defender o mesmo Dahrendorf.

5.
No mais, sinceramente, não esperava que entre interlocutores com formação jurídica pudesse ser confundido o plano conceptual de caracterização da democracia com o da esfera de aplicação das suas leis, nem o de uma preocupação eminentemente legislativa com o da função judicial. Um passo mais e o elástico comparativo chegaria à tolerância no cumprimento da pena. Não, não é por aí. Como o Pedro Cardoso bem sabe, nada no meu post permitia tal extrapolação. O que permitia era, antes, concluir que assim como o facto da Constituição ser revisível significa, entre outras coisas, que está aberta ao questionamento ou crítica, também a democracia e cada uma das leis que a asseguram, seja a que proíbe o homicídio, o sequestro, a injúria ou qualquer outra, podem e devem ser democraticamente questionadas e, se necessario, revistas. A menos que da lei se tivesse uma concepção divina, o que não é o caso do Pedro, claro. Não se confunda, pois, a liberdade de rever ou modificar uma lei - que foi ao que me referi - com o eventual laxismo axiológico do seu desenho normativo – que, sou levado a crer, foi para onde o Pedro me “quis levar”.

(*) Sabe-se como “esticar” até às ultimas consequências cada palavra ou afirmação do interlocutor leva à destruição pura e simples das condições de possibilidade da própria comunicação.


Publicado n'O Eleito.

27 novembro 2005

A conversa dos programas de conversa

A 27 de Fevereiro passado, estreava na RTP1 o programa "Escolhas de Marcelo" com o figurino que ainda hoje mantém. E logo no dia seguinte escrevi:

Não gostei de Ana Sousa Dias, porque foi uma sombra da magnífica jornalista e entrevistadora que já todos conhecemos. A culpa maior terá sido do professor que quase não lhe deixou abrir a boca de tão entusiasmado que estava com aquilo que tinha para dizer. (…) vale tudo, menos o que se viu nesta primeira "aparição": a jornalista a perguntar e a fazer observações (pertinentes), e o "entrevistado" a fugir às perguntas ou a ignorar as observações, quem sabe, até, a fingir que não as ouviu.

Ao princípio ainda seguia o programa mas confesso que acabei por lá não voltar a partir do momento em que percebi que aquele formato era para manter. E parece que percebi bem, porque nove meses depois constato que nada mudou, a avaliar pela crítica que Pedro D'Anunciação lhe faz nesta última edição do Expresso:

"No que Marcelo perdeu realmen­te foi no formato, de que faz parte Ana Sousa Dias. Eu diria até que quem perde mais é ela, Ana Sousa Dias, que construiu uma reputação de boa entrevistadora, num público mais exigente e reduzido, deixa ruir aqui essa reputação, perante audiên­cias alargadas. O seu papel, no progra­ma, é permitir que Marcelo possa fa­lar desembaraçadamente, sem ter de olhar para a câmara. Percebe-se que os temas não são escolhidos por ela, e as próprias perguntas obedecem a orientações claras do professor. Por vezes, Ana procura meter uma colhe­rada, afirmando a sua visão mais à es­querda. Mas ele ignora-a quase sem­pre, deixando no espectador apenas a ideia de uma interrupção inoportu­na e sem importância."


E, realmente, o que mais surpreende é esta posição de Ana Sousa Dias a qual, recorde-se, cedo declarou ao DN (01.03.2005) que não partilhava da satisfação de Marcelo, que não era assim que devia fazer e que o programa teria que ser afinado. Foi mesmo ao ponto de anunciar: "Se ao fim de dez [programas] não tiver encontrado o tom, vou-me embora." Ora não vejo o que terá mudado no seu tom desde essa altura até agora.

Pode acontecer que a Ana tenha acolhido de braços abertos o que Judite de Sousa disse há alguns meses atrás (em 05.07.2005), no "Clube de Jornalistas", ou seja, que estes programas não tratam de jornalismo mas sim de opinião e que consistem numa conversa e não propriamente numa entrevista. Mas para além da questão de se saber se a participação de jornalistas neste tipo de eventos televisivos (e em tais moldes) é ou não compatível com os deontológicos (e éticos) princípios de isenção, rigor e independência, há que reconhecer o seguinte:

1.º Nem a opinião fica do lado de fora do jornalismo (porque opinião nao é subjectivismo) nem os programas em questão visam dar a conhecer a opinião das duas jornalistas mas sim a opinião dos seus "entrevistados". É a opinião destes últimos que conta e não a das jornalistas. Como, de resto, em qualquer entrevista.

2.º Até que ponto esta moda de colocar jornalistas a "conversar" com notáveis políticos e comentadores (em alternativa às clássicas entrevistas) não fará a "conversa" emergir como novo género jornalístico?

3.º Se o programa conduzido por Judite de Sousa ainda se poderia confundir com uma "conversa" (pelo recurso ao principio da caridade interpretativa), já no programa da Ana Sousa Dias o que salta aos olhos de toda a gente é que Marcelo Rebelo de Sousa quer pouca conversa. Sendo assim, o que fica lá a Ana a fazer?

Que grande conversa.

Ter razão antes do tempo?

A propósito do braço-de-ferro entre a Ministra da Educação e os Sindicatos dos Professores diz Fernando Madrinha no Expresso desta semana que é mais fácil argumentar quando se tem razão e esse é o caso da ministra e não dos sindicatos.

Não tenho opinião formada quanto às culpas no cartório de uma ou de outra parte nem isso vem ao caso. O que no âmbito deste blogue mais me chama a atenção é o facto de Fernando Madrinha ter recorrido à duvidosa e injustificada premissa de que É mais fácil argumentar quando se tem razão.

A afirmação tem, admito, notória força persuasiva mas não resiste a um olhar mais atento. É que dizer que alguém tem razão mesmo antes de argumentar será sempre um procedimento auto-desqualificador para quem o diz, na medida em que toma antecipadamente como certo precisamente o que a argumentação visava provar.

Erro semelhante é o de se classificar a qualidade de uma argumentação em função do valor da causa, considerando que a argumentação “justa” é aquela que defende uma causa “justa”. Como diz Olivier Reboul, é o mesmo que “julgar antes do processo, eleger antes da campanha eleitoral, saber antes de aprender. Não existe dogmatismo pior” (*). Daí que, na argumentação, ninguém possa ter razão antes do tempo.

(*) Olivier Reboul, (1998), Introdução à retórica, S. Paulo: Martins Fontes, p. 99

26 novembro 2005

A denegada retórica de Cavaco

Cavaco Silva fez ontem, no Porto, estas duas afirmações de carácter eminentemente retórico:

Afirmação A:


A gente do Porto não é gente de se deixar enganar, sabe bem que candidatos defendem a verdadeira justiça social e igualdade de oportunidades, não tendo todos os dias palavras vazias e retórica na boca

Afirmação B:


Não costumo pronunciar-me sobre declarações dos que foram meus colaboradores no Governo e, por alguma razão, tiveram que ser afastados

(Sublinhados meus)


Se na primeira das afirmações (A) já é evidente que só através de outra retórica consegue censurar a retórica na boca (a gente do Porto não é gente de se deixar enganar, sabe bem que... etc. etc.) é especialmente na segunda (B) que Cavaco se revela, afinal, um exímio praticante na arte que publicamente tanto tem denegado. E senão vejamos. Repare-se no mortífero efeito retórico desta última afirmação (B) que, não fora a intenção manifestamente retórica de Cavaco, não precisaria de ir além da sucinta frase: Não costumo pronunciar-me sobre declarações dos que foram meus colaboradores de Governo. Estava o recado dado. Cavaco deixaria assim apenas uma ideia muito geral de que as críticas de quem tenha participado nos seus governos são, até certo ponto, naturais e, por isso mesmo, não podem ser levadas muito a sério.

Mas ao acrescentar aquela "venenosa" parte final e, por alguma razão, tiveram que ser afastados, Cavaco passou nitidamente ao ataque, ou se se quiser, deu a resposta que começara por negar. De uma penada, não só lembra que Cadilhe foi afastado como adianta que o foi porque tinha que ser. Ora isto de se ser afastado porque teve que ser, regra geral, não é orgulho para ninguém, pior ainda, se for notícia de jornal.

Em resumo:

a) quando Cadilhe desferiu um ataque à pessoa de Cavaco, comparando-o a um eucalipto, não imaginava, por certo, que ainda levaria com esse mesmo eucaplipto na cabeça como, metaforicamente, veio a acontecer.

b) veja-se como uma tão curta afirmação retórica (a de Cavaco) pode destruir o efeito persuasivo de uma entrevista inteira (a de Cadilhe).

c) a retórica de Cavaco, ainda que denegada, revelou-se mais eficaz do que a de Cadilhe.

Publicado n'O Eleito.

Cai neve sobre o Jornalismo

Repórter da SIC-Notícias, algures na Serra da Estrêla, "dispara" sem a menor cerimónia:

"Há notícias de que esta noite caiu muita neve em Manteigas"

"Há notícias"? Mas se não há notícia sem fontes como aceitar as fontes de que não há notícia? Já não sei o que caiu mais: se a neve, se a credibilidade.

Os estudos retóricos em Portugal

Foi ontem criado na Covilhã (UBI), o GT-Retórica - grupo de trabalho constituído por investigadores da área da Retórica - que decorrerá sob a égide da SOPCOM e tem como grande objectivo impulsionar os estudos retóricos em Portugal

Tito Cardoso e Cunha foi eleito Presidente do GT-Retórica para os próximos 3 anos e, por sua indicação, será coadjuvado por Ivone Ferreira e Américo de Sousa.

Em curso está já a elaboração da Carta Fundadora, seguindo-se-lhe, muito em breve, o respectivo Plano de Acções.


Membros-fundadores do GT-Retórica:

- Tito Cardoso e Cunha (Presidente)
- Antonio Fidalgo
- Paulo Serra
- Anabela Gradim
- José Esteves-Rei
- Hermenegildo Borges
- António Bento
- Catarina Moura
- Ivone Ferreira
- Américo de Sousa

* Os professores/investigadores que queiram igualmente aderir a este GT poderão fazê-lo através do email abaixo indicado.

Informações e esclarecimentos:
gt.retorica@persuasao.com.

25 novembro 2005

Graça favorita

Há já algum tempo que não ouço dizer que a candidatura de Mário Soares vai unir todos os portugueses. Que pena. Era a minha graça favorita nesta campanha presidencial.

A absoluta (e)vidência de Sócrates

José Sócrates afirmou que a necessidade do projecto da Ota é "uma absoluta evidência".

Foi Chaim Perelman quem defendeu que não se argumenta contra o que é evidente. Sócrates terá, por isso, tentado pôr um ponto final à embaraçante discussão pública do projecto, proclamando "lá do alto" a absoluta evidência da sua necessidade. Mas a vida também é feita de detalhes, como aquele que terá escapado a Sócrates: é que a evidência não precisa sequer de ser dita. Aliás, dizê-la é já admitir que não será tão evidente como se imagina ou como se quer fazer crer. E Sócrates disse-a. Chamou-lhe até absoluta. Logo: siga o debate.


Publicado n'O Eleito.

24 novembro 2005

Claro

E que do escuro do canto ou da noite, se faça dia. Votos de boa distribuição para a Editora Canto Escuro. Claro.

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Dúvidas democráticas

(...) nem sempre é evidente, quando pessoas e partidos se apresentam a eleições, o que vão fazer, se ganharem - dizia Ralf Dahrendorf, no Público de ontem, querendo com isso ilustrar a sua convicção de que "as eleições não chegam, se se quer levar a democracia ao mundo".

Até aqui, nada a apontar. Sabemos hoje, por experiência própria, o quanto uma democracia meramente formal e electiva pode mascarar situações de desigualdade económica, política e cultural. Ou, para citar o exemplo do próprio Dahrendorf, é um facto que eleições democráticas e justas podem levar à ascensão de um Presidente como o do Irão que quer "varrer Israel do mapa do Médio Oriente". A democracia carece, portanto, dos seus pilares ou requisitos de afirmação (neste caso, de afirmação liberal) , que para Dahrendorf seriam três:

1) Intolerância face aos adversários da democracia
2) Primado da lei
3) Sociedade civil vigilante e activa

Nada a dizer dos requisitos 2) e 3) que surgem como perfeitamente pacíficos e até inerentes a um moderno Estado de Direito, onde as novas tecnologias permitem cada vez mais elevado grau de reacção pública, de escrutínio do poder, de intervenção cívica. Veja-se o promissor exemplo da própria blogosfera. Saber qual destes dois requisitos democráticos - o primado da lei e a sociedade civil vigilante - oferece mais garantias de controlo da governação e do poder político em geral, é uma outra questão a que, aliás, espero voltar. Por agora, fico-me pela primeira das condições que Daherendorf estabelece como imprescindíveis à preservação de um regime democrático: a intolerância face aos adversários da democracia. É sobre esta última que pergunto a mim mesmo, mas também aos politólogos que me queiram honrar com uma resposta ou o devido esclarecimento:

1) Não estará uma tal condição - cuja operacionalidade não se nega - em contradição com a própria natureza tolerante e consensual da democracia?

2) Pode um democrata admitir ao diálogo apenas os que pensam como ele?

3) Se a própria Constituição é revisível e contestável, que sentido faz proibir, à partida, uma crítica ou um ataque à democracia?

Publicado n'O Eleito.

23 novembro 2005

O Eleito

Gostei dos Estatutos. Gostei do pluralismo político e opinativo do projecto. Gostei da companhia de excelentes bloggers que ainda não me fora dado descobrir. Três fortes razões para, a partir de agora, dizer de minha justiça também aqui. Ao Dolo eventual, obrigado pelo convite.

Excerto de um livro não anunciado (267)

Mendacium est enunciatio cum voluntate falsum enuntiandi – assim definia Santo Agostinho a mentira. E, de facto, mentir é dizer o falso com a intenção de enganar. Mas a aparente simplicidade desta expressão poderia levar-nos a descurar a problematicidade que a encerra, nomeadamente quanto ao que se deve entender por falso e por intenção de enganar. Assim, dizer o falso não significa tão somente dizer o contrário do verdadeiro. No que à mentira concerne, dizer falso integra igualmente o dizer o diferente e até, dizer o que nem é falso nem verdadeiro. Por outro lado, limitar o discurso da mentira àquele em que o respectivo autor tem a intenção de enganar o ouvinte, pressupõe, desde logo, a exclusão do discurso meramente equivocado, ou seja, aquele em que o orador diz, sinceramente, algo de errado, que, no entanto, tem como certo. Quando o sujeito que fala está convencido de que diz a verdade, ele não mente, apenas erra.

22 novembro 2005

Título enganoso

No Jornal de Notícias de 20 de Novembro de 2005, na página da política e a propósito das escutas telefónicas relativas ao caso "Portucale" tornadas públicas pelo "Expresso", podia ler-se este título em grande destaque:

Envolvidos negam ter pretendido afastar PGR

Recordemos que na notícia do Expresso, os envolvidos foram todos nomeados e eram nada menos do que sete, a saber: Souto Moura, Rui Pereira, José Sócrates, Jorge Sampaio, Fernando Marques da Costa, Abel Pinheiro e Paulo Portas. Já o texto para que remetia este título do JN foi elaborado com base nas declarações de apenas quatro individualidades: José Sócrates, PGR/Souto Moura, Paulo Núncio (CDS) e Marques Mendes (PSD). O que quer dizer que o JN pura e simplesmente ignorou cinco dos sete envolvidos pela notícia do Expresso e, não contente com isso, ainda os "pôs" a negar o que nunca negaram. Acresce que, entre os quatro a que o JN faz referência, dois deles nada tiveram que ver com o assunto - é o caso de Paulo Núncio e de Marques Mendes.

Primeiro reparo:

Como pôde então o JN passar para grande título a afirmação de "que os envolvidos negam ter pretendido afastar PGR" se dispunha apenas das declarações de dois deles?

Observe-se agora também as diferentes reacções de cada uma das quatro individualidades que o JN abusivamente considerou como igualmente "envolvidas" e facilmente se concluirá que apenas uma delas desmentiu a notícia: José Sócrates, obviamente. Das restantes três, uma, embora envolvida, não confirma nem desmente, antes tudo admite -PGR/Souto Moura; outra não é envolvida nem sabe de nada - Paulo Núncio/CDS; e finalmente, Marques Mendes (PSD), não é envolvido mas até confirma a notícia com uma demolidora declaração: "Toda a gente sabe que foi apresentada essa proposta ao presidente da Republica que a recusou".

Segundo reparo:


Como conseguiu o JN retirar de posições tão divergentes a conclusão unânime de que "os envolvidos negam ter pretendido afastar o PR"?

Ouvir as partes interessadas era, curiosamente, o título da mais recente crónica do provedor do JN que judiciosamente a concluía com o reconhecimento de que "os leitores merecem mais informação". Pelos vistos, merecem também uma informação melhor.


21 novembro 2005

Não era de esperar mais de nós?

No Abrupto:

Contrastes: pelo contrário, magnífica reportagem da SIC sobre o Martim Moniz como "lugar" de diferentes culturas, civilizações, religiões. Em poucos minutos, um retrato como deve ser das comunidades, com personagens certas e típicas e com a câmara dentro do mundo delas: o altar hindu; o angolano que fez a guerra dos dois lados (deve ter começado na UNITA e depois ter sido integrado no exército governamental)

Também vi esta reportagem e uma das coisas que mais me impressionou foi a candura com que o angolano confessava o seu desalento pela enorme diferença entre o Portugal que imaginara e o país que veio encontrar. Particularmente quando desabafou: "Num país com paz há mais de mil e quinhentos anos, pensei que aqui se pudesse escolher o emprego que se quisesse, que se tivesse uma boa formação, pensei até que o transporte fosse de borla...". Passando por cima da imprecisão histórica, reconheça-se que, implícita, fica aqui a boa pergunta: não era de esperar mais de nós?

A coscuvilhice do Google

O Google sabe os sites que você procura, o Google sabe as notícias que você lê, o Google sabe as imagens que você busca, o Google conhece seus grupos de interesse, o Google sabe o que você compra, o Google sabe que anúncios chamam sua atenção, o Google acompanha seus investimentos, o Google sabe onde você mora, o Google sabe que assuntos você lê em weblogs, o Google sabe que weblogs você acompanha, o Google sabe onde você vai e como você vai, o Google sabe para onde você viaja e como está o clima por lá, o Google está no seu computador e no seu telefone, o Google sabe que livros você lê e que filmes você assiste, o Google sabe quem são seus amigos, o Google sabe o que você escreve no seu weblog, o Google sabe tudo sobre quem visita o seu site, o Google vê as suas imagens, o Google ouve as suas conversas, o Google lê os seus emails... Você está preocupado com a sua privacidade ou somente feliz pelas bênçãos recebidas?

O poder do Google não é novidade. O que nunca me passou pela cabeça é que soubesse mais de mim do que sabe a minha própria mulher. Não acho justo, mas é a realidade. Desculpa querida, mas deixaste de ser quem no mundo me conhece melhor.

20 novembro 2005

Sócrates e o pseudo-desmentido

Ao afirmar que o Governo «nunca» propôs ao Presidente da República, Jorge Sampaio, a substituição do actual Procurador Geral da República, José Sócrates serviu-se de um subtil jogo de palavras para dar a impressão de que nega totalmente a notícia do Expresso. Mas não nega. O subterfúgio a que recorreu foi o de fugir ao assunto – como veremos - respondendo a uma questão diferente mas de modo a que parecesse a mesma, sempre num tom muito categórico e, portanto, persuasivo.

Mas quem quer que tenha lido a notícia do Expresso pode confirmar que o jornal não afirma (nem reproduz quaisquer declarações nesse sentido) que “o Governo” propôs ao Presidente da Republica o que quer que seja. A notícia apenas veicula declarações de terceiros (figuras políticas devidamente nomeadas) nas quais é dito, preto no branco, que Sócrates (e não o Governo) quis substituir Souto Moura e, para o efeito, chegou até a auscultar informalmente a opinião do PR. Note-se: chegou a auscultar e não a “propor”. (É claro que perante a recusa do PR - ver notícia - Sócrates só insistiria em apresentar uma proposta formal se quisesse afrontar o PR)

Logo, se o Primeiro-Ministro realmente pretende fazer ao país um categórico desmentido da notícia do Expresso (e já demonstrou que essa é a sua vontade) então terá que fazê-lo com transparência, ao invés de recorrer a meros artifícios discursivos que, a um olhar mais atento, escondem o gato mas deixam o rabo de fora. E para isso, o mínimo que se exige é que não volte a fugir ao assunto e se pronuncie, negando ou admitindo, cada um dos principais factos que compõem a dita notícia, a saber:

1) "Escutas telefónicas feitas no âmbito do "caso Portucale" surpreenderam conversas entre altos dirigentes e figuras do PS e CDS, visando a demissão do procurador-geral da República, Souto Moura, e a sua substituição pelo jurista Rui Pereira (...)".

2) “Nessas conversas afirma-se que José Sócrates queria substituir Souto Moura por Rui Pereira e que, ainda antes de tomar posse (…) teria auscultado informalmente Jorge Sampaio sobre a questão”

3) “Fernando Marques da Costa, conselheiro do PR, discutiu várias vezes com Pinheiro a substituição de Souto Moura”

4) “Altos dirigentes do CDS e figuras do PS discutiram com Abel Pinheiro essa possibilidade, e invocando o nome de Sócrates afirmaram que o primeiro-ministro já fizera a proposta a Jorge Sampaio”.

5) “Nas conversas de Pinheiro com Rui Pereira (...) este confidenciou que tinha sido sondado por José Sócrates para PGR”.

6) “o então líder demissionário do CDS [Paulo Portas] informou Abel Pinheiro que Sócrates lhe pedira o apoio para substituir o PGR e convencer o PR”

7) “(…) José Sócrates sugeriu, de facto e informalmente, o nome de Rui Pereira a Jorge Sampaio, pelo menos duas vezes - mas o PR discordou do "timing" e do nome de Rui Pereira”.


Está em causa a transparência ética dos governantes que, aliás, não terá saído muito favorecida pelo silêncio a que se remeteu a maioria dos visados (contactados pelo jornal). O mesmo se diga da reacção vinda do Presidente da Republica que, sem pôr minimamente a causa o teor da notícia do Expresso afirmou nunca ter ouvido falar "dessas escutas telefónicas". Segundo o seu porta-voz, é mesmo a "primeira vez que o assunto lhe é apresentados nesses moldes" ("nesses moldes", sublinhe-se, o que, naturalmente, não exclui a hipótese da substituição do actual procurador lhe ter sido anteriormente apresentada).

Por outro lado, o próprio Expresso arrisca aqui a sua credibilidade já que uma coisa é transcrever ou dar conta de conversas que constam de uma gravação de escutas telefónicas, outra é tomar posição e reivindicar um conhecimento sem reservas do principal facto nelas anunciado, que é o que faz quando assume: “O EXPRESSO sabe que José Sócrates sugeriu, de facto e informalmente, o nome de Rui Pereira a Jorge Sampaio, pelo menos duas vezes – mas o PR discordou do “timing” e do nome de Rui Pereira”
.

19 novembro 2005

Política à portuguesa: uma chupeta internacional

Está tudo dito sobre a actual política portuguesa, quando duas das suas mais conhecidas figuras reconhecem (ao telefone) que a demissão de um alto cargo da República tem que ser compensada por uma "chupeta internacional" (cargo internacional de relevo).

Creio que não é nada recomendável este uso tardio da chupeta. Mas, em qualquer caso,
se é só para "mamar", porque não se contentam os políticos com as mil e uma "chupetas nacionais" a que vão deitando a mão?


Excerto de um livro não anunciado (266)

Contudo, a natureza do próprio acto de argumentar faz com que subsistam sempre algumas dificuldades, duas das quais saltam imediatamente à vista. Uma primeira dificuldade assenta na diversidade do humano, que tem a ver com a não homogeneidade das características biológicas e psico-sociais que estão por detrás das desiguais competências argumentativas e atitudes dos sujeitos da retórica. Mas como bem sustenta Joaquim Aguiar, “o tudo igual, o somos todos primos de toda a gente, leva à morte. Não há liberdade sem risco” (*). A cada um e só a cada um compete decidir sobre o grau de investimento cultural a fazer na sua auto-formação, em função das necessidades e ambições pessoais que também só ele tem legitimidade para definir. E se assim é, assumir a responsabilidade pelos seus êxitos e fracassos é uma justa contrapartida dessa liberdade. Outra dificuldade da relação retórica, de que já nos ocupamos mas sobre a qual se justifica agora um maior aprofundamento, é o problema da mentira e do engano, cuja possibilidade nunca está, à partida, afastada.

(*) Joaquim Aguiar, in Rebelo, J. (Org.) (1998), Saber e poder, Lisboa: Livros e Leituras, p. 121

18 novembro 2005

Excerto de um livro não anunciado (265)

Sublinhe-se que, na retórica, o auditor é livre de conceder ou não essa confiança, podendo igualmente condicionar o sentido da sua decisão em função da maior ou menor confiança que lhe mereça o orador e a proposta que este lhe apresenta. Tem, inclusivamente, a possibilidade de contra-argumentar, propor alterações à proposta inicial, participar na sua reelaboração e contribuir, desse modo, para o enriquecimento da solução que virá a aprovar, o que nem sempre acontece com os referidos sistemas abstractos, nomeadamente aqueles em que predominam os chamados contratos de adesão. Energia eléctrica, leasing e seguros, são apenas alguns exemplos de actividades sócio-económicas onde vigoram tais contratos-tipo cuja principal característica reside no facto do utente apenas poder exercer uma versão mitigada do seu direito de contratar, já que a elaboração de todo o clausulado compete exclusivamente à entidade que presta o serviço, o que faz com que à outra parte contratante, não reste outra prerrogativa que não seja a de aderir ou não. Ao contrário, a retórica configura uma liberdade individual, no sentido convencional definido por Villaverde Cabral como indo “da ausência de constrangimentos (...) até à liberdade de escolha” (*), o que proporciona, sem dúvida, bases mais sólidas para a criação de um clima de confiança entre os interlocutores.

(*) M. Vilaverde Cabral, in Rebelo, J. (Org.), (1998), Saber e poder, Lisboa: Livros e Leituras, p. 109

16 novembro 2005

Retórica eleitoral

* Resposta ao Paulo Cunha Porto (com 24 h de atraso)

Os portugueses têm o bom senso de distinguir aquilo que é retórica da realidade - Cavaco Silva

Ao contrário do que Cavaco aqui sugere, aquilo de que os portugueses mais precisam para avaliar um político, é de aprender a dominar a retórica dos seus discursos e demais declarações públicas. É por aí que podem tentar descobrir os contornos de uma realidade que o político não raras vezes tudo faz para manter longe dos olhares dos cidadãos (e dos jornalistas), no segredo do seu gabinete. Neste aspecto, Cavaco foi infeliz, pois manda a isenção admitir que se o falar muito menos do que Soares, por exemplo, pode ser uma boa estratégia de campanha (no sentido competitivo), a verdade é que também acaba por sonegar aos eleitores boa parte da informação a que estes têm direito. E estando Cavaco convencido de que os portugueses sabem distinguir entre retórica e realidade, certamente que os toma por inteligentes. A pergunta é: pode um eleitor inteligente contentar-se com o silêncio de um candidato presidencial? Se um presidente da republica não exerce o seu mandato (apenas) por escrito, como reagir perante um candidato que se limita praticamente a ler as suas próprias declarações e foge como diabo da cruz de uma menos formal troca de impressões ou, não as podendo de todo evitar, se refugia em meras generalidades?

Cavaco não está bem. Muitos dizem que está na mesma, que permanece igual a si próprio, nomeadamente, na maneira de enfrentar os jornalistas. Pessoalmente penso que isto não corresponde inteiramente à verdade. Cavaco não está igual, Cavaco está pior. Não se solta. Nem é ele, nem o seu personagem. Parece que traz às costas um pesado fardo de que só se poderá livrar no dia das eleições. Mas nada disto teria tanta importância se nos fosse falando um pouco mais, não dos princípios e generalidades comuns a outras candidaturas, mas sobre o que realmente pensa quanto aos problemas concretos que a sociedade e o país têm à sua frente. Não o fazendo, leva a que o eleitor desligue das suas repetidas palavras, do seu repetido discurso, da sua repetida retórica e passe a concentrar-se quase exclusivamente naquilo que lhe é dado observar: um candidato que embora lidere destacadamente as sondagens, surge quase sempre "à defesa", pouco à vontade nas respostas, encrispado e com ar de quem está mortinho que tudo "isto" acabe. E tudo "isto" tem a ver, sobretudo, com as implacáveis críticas dos outros candidatos e o escrutínio da comunicação social.

Compreende-se o natural desconforto e ausência de vocação para suportar o lado mais folclórico de uma campanha eleitoral. Mas nem isso legitima a fuga à informação e ao debate. Pessoalmente estou convencido de que a pior estratégia neste combate eleitoral é a de ignorar os adversários ou comportar-se como se eles não existissem. Por outro lado, só um voto esclarecido confere qualidade às eleições. Mas se os candidatos presidenciais não se dão a conhecer um pouco mais do que já é do domínio público, não se pode falar de verdadeiro esclarecimento. Creio que Mário Soares têm procurado ir por aí, aproveitando todos os públicos e ocasiões para retoricamente melhor desvendar o seu "pensamento presidencial". Naturalmente que há sempre candidatos mais reservados do que outros. Há os que dizem quase tudo e os que quase nada dizem. Cada um possui, digamos, a sua "caixa negra" - o seu lado oculto, os seus receios, os seus pudores ou limitações - à qual mais ninguém tem o direito de aceder. E pelo que se tem observado parece não haver dúvidas: a "caixa negra" de Cavaco é bem maior do que a "caixa negra" de Soares. Mas uma coisa é certa: se Cavaco escolheu falar pouco, tanto mais retórico terá que ser.

Diferença retórica

Em abono da verdade e para compensar o susto do Paulo Cunha Porto, reconheça-se:

- Não é grave que Cavaco diga que não faz retórica. O que seria grave é que não a fizesse.

15 novembro 2005

Boa pergunta

Dizer que para conversar com o Pedro Caeiro estou sempre pronto, é ainda ser politicamente correcto? Boa pergunta: o que é ser politicamente correcto?

Aviso: respostas politicamente correctas não serão consideradas (mas o que são respostas politicamente correctas?).

Excerto de um livro não anunciado (264)

A verdade é que confiança e risco são, e sempre foram, inerentes ao existir humano, tanto no que diz respeito à acção como ao pensamento. Por mais que se estude, por mais que se aprenda, aquilo que conhecemos é ínfimo se comparado com o que continuamos a ignorar. Além disso, regra geral, sabemos pouco sobre o que sabemos. Só a confiança nas fontes desse saber nos proporciona a indispensável estabilidade psicológica. Como diz Giddens, até “a confiança básica na continuidade do mundo tem de alicerçar-se na simples convicção de que ele continuará e isto é algo de que não podemos estar inteiramente seguros” (*). Que fazemos nós ao longo da vida senão confiar nos outros? Não utilizamos no dia-a-dia um conjunto de conhecimentos cujo fundamento e validade nunca nos foi dado testar? O que são as nossas relações sociais senão “laços baseados na confiança, uma confiança que não é predeterminada mas construída, e em que a construção envolvida significa um processo mútuo de autodesvendamento”? (**). Além disso quando, por exemplo, acendemos uma luz, abrimos uma torneira ou ligamos a televisão, não estamos a fazer mais do que reconhecer a nossa confiança naquilo a que Giddens chama de sistemas abstractos, que organizam e asseguram uma prestação de serviços cuja concretização ou funcionamento nem ousamos pôr em causa. Isso mostra como cada vez mais nos vemos forçados a confiar em princípios impessoais e em pessoas anónimas que estão por detrás desses sistemas e organizações. Faria sentido confiar em todas estas pessoas ausentes e não confiar num orador que temos à nossa frente, desenvolvendo uma argumentação que podemos acompanhar passo a passo, refutar e sancionar com a nossa eventual não adesão?

(*) Antony Giddens, (1996), Consequências da Modernidade, Oeiras: Celta Editora, p. 102
(**) Ibidem, p. 85

14 novembro 2005

Excerto de um livro não anunciado (263)

Desvalorizar então a retórica por ser passível de manipulação seria equivalente a negar a política só porque alguns dos seus agentes recorrem a práticas mais ou menos censuráveis e supor, além disso, que os destinatários de tais práticas, são potenciais vítimas indefesas sem qualquer outra alternativa que não seja a de caírem nas garras do discurso ardiloso. Mas o que, tanto da retórica como da política, se deve dizer, mais exactamente, é que os eventuais usos abusivos ou manipuladores que nelas têm lugar sempre se inscrevem e têm o seu ponto de partida na dimensão ética dos seus protagonistas, não sendo a retórica, como a política, mais do que campos particulares da sua manifestação. É que nem a eventual ignorância do auditório pode justificar um preconceito especialmente negativo contra a retórica. Certamente que é desejável a maior simetria possível entre as posições de quem fala e quem escuta, entre quem propõe e quem avalia, no que se refere à formação cultural e capacidade crítica necessárias à melhor escolha possível. Um auditório menos preparado perante um orador que domina não só a técnica de argumentar mas também o foro da questão em apreço, pode não ver motivos para regatear a confiança em quem lhe parece tão senhor da situação. E há nisso uma certa dose de risco, sem dúvida, como haverá, sempre que se tome uma decisão ou se tenha por válido algo que, por esta ou aquela razão, não tivemos a possibilidade de comprovar. Mas porque deveria a confiança assumir uma conotação tão “perigosa” só porque ocorre no seio da retórica?

12 novembro 2005

Intermitências da vida

Vale a pena viver por toda a eternidade? Ficamos a saber pelo JN de ontem que José Saramago acha que não. E até justifica: "se não morrêssemos, estaríamos condenados a uma velhice eterna. Seria a pior das perspectivas". Parece que este é o tema principal da sua mais recente obra "Intermitências da morte" onde, segundo anuncia o jornal, se pode ler "ao longo de 200 páginas de pura provocação, a história de uma nação que, de um dia para o outro, se viu a braços com 62 mil pessoas que não morriam". O romance será, por certo, mais um êxito. A ideia é que não é nova.

Num pequeno livro editado em Portugal, em 1994, pela Vega, sob o título Ética, Medicina e Técnica (trad. Fernando Cascais), Hans Jonas já formulava tal hipótese, tendo em conta que os incríveis progressos das ciências biomédicas e da engenharia genética poderão, a médio ou longo prazo, tornar possível um anormal prolongamento da vida e até a abolição da própria morte. A diferença é que enquanto no romance de Saramago estará em causa o futuro de uma cidade de algumas dezenas de milhar de habitantes, já a hipótese de Jonas alcança toda a humanidade. A semelhança é que Jonas, tal como Saramago, faz uma antevisão muito negativa do que seria (ou será?) esse mundo.

Não podendo aqui explanar cada um dos argumentos que me levam a não comungar do pessimismo de ambos, opto por deixar um pequeno excerto do meu livro "O Homem Com Medo de Si Próprio" que representa apenas uma parte da minha reacção aos receios e às dúvidas de Jonas:

"(...) o teor de algumas das interrogações que [Jonas] lança, a propósito das novas possibilidades de intervenção da técnica em domínios como o prolongamento da idade, a abolição da morte, a manipulação do comportamento e o controlo da espécie, podem ser, de algum modo, conotáveis com uma atitude “reaccionária”, face ao respectivo progresso cientifico. Com efeito, como explicar de outra forma o seu temor perante a possibilidade do prolongamento da vida, que, segundo ele conduziria a uma proporção decrescente de juventude numa população idosa? Alem do mais, esta sua conclusão, pressupõe que só variaria o prolongamento da idade, mantendo-se constantes todos os outros factores. Mas é sabido que o mundo não pára, como não pára a vida nem o saber. Se se enveredar pelo prolongamento da idade, é certo que vai aumentar o número de pessoas vivas, mas não se sabe se vai diminuir, automaticamente, o número de jovens. Porque por um lado, é de esperar que os avanços da técnica se orientem cada vez mais para o rejuvenescimento físico (e psicológico?) e por outro, estão já ao dispor do homem novos processos de reprodução humana de que a inseminação artificial e a fertilização in vitro são bons exemplos e a clonagem talvez o venha a ser, também, em breve. Cenário utópico, este? Mas não será muito mais utópico pensar - como parece acontecer com Jonas - que a condição humana parou de mudar, ou que a modificação do homem ocorrerá, no futuro, somente ao nível da sua forma de agir?"

Já não se usa

São 9 da noite e estou na estrada, de regresso da Covilhã. A meio do caminho, procuro um restaurante para jantar e, em boa hora, descubro o "St.ª Luzia", em Viseu. Aparcamento privativo, instalações sóbrias, decoração a gosto. Logo à entrada, um dos empregados, lá ao fundo, larga o que estava a fazer e vem imediatamente receber-me à porta. Saudação e sorriso de boas vindas. Profissionalismo. Simpatia. Sem salamaneques, sem exageros. Apenas muita atenção ao cliente. Pedi bacalhau à braz, escolhi o vinho e... ataquei as entradas. Quando o bacalhau ficou pronto, o empregado - ao contrário da generalidade dos profissionais da restauração - não se precipitou com a travessa para a mesa. Preferiu vir polidamente avisar-me que já o poderia servir quando desejasse. Tudo sempre com a maior sobriedade, sem se querer fazer ouvir, a não ser por mim. Pedi que servisse. Estava óptimo. Nunca comi um bacalhau à braz tão bem confeccionado. Sobremesa: fatia de melão, para mim, e rodela de ananás para os meus acompanhantes. Não faltou o prato de castanhas assadas, em honra de S. Martinho. Pedi três cafés e a conta. No final, paguei apenas 40 euros por três pessoas. Era impossível sair daquela casa sem felicitar pessoalmente o chefe do pessoal, pelas instalações, pela cozinha e pelo serviço. E foi o que fiz com todo o prazer. É que já não se usa ser tão bem tratado num restaurante.

10 novembro 2005

Atentado ao bom nome

"A suspeita que na sociedade portuguesa foi lançada contra mim essa já ninguém ma tira" (*), diz Jorge Coelho e diz muito bem. Porque a imperdoável fuga de informação e consequente divulgação mediática da busca que a PJ efectuou em sua casa e do presumido motivo da mesma, fez com que, pelo menos durante um certo período, Jorge Coelho fosse o nome mais rapidamente associado a um jogo de xadrez. Ora isto é muito grave porque o bom nome é, seguramente, a maior riqueza que cada um tem.

A imaginação fértil, e sem o menor escrúpulo, voltou a fazer das suas. Jorge Coelho fala de suspeita sob o seu bom nome. Mas o problema é que, como regra geral acontece nestes casos, não falta quem avance por uma miríade de possíveis incriminações que logo passam a outros tantos rumores. A suspeita aproxima-se então perigosamente da "verdade", e como tal passa a ser encarada, na sua ulterior propagação. É, por isso, neste registo final de "facto certo e verdadeiro" que o atentado ao bom nome e à imagem acaba por se consumar e não já no de mera suspeita.

A partir daqui, pode-se dizer que tudo a que o visado ainda pode aspirar é que cada um dos futuros receptores de tão ignóbil "verdade" esboce, ao menos, uma inicial reacçao de surpresa: "Quem? Aquele que... ah... oh... não, esse não pode ser, eu não acredito!". Mesmo já acreditando. E isto, sendo absolutamente intolerável, tem que encontrar a resposta adequada ao nível do sistema jurídico-legal, mas deve igualmente (e sobretudo) suscitar uma frontal e pública reprovação ético-cultural. A nossa passividade (e resignação) perante tão insuportáveis abusos só pode encorajar a sua multiplicação.

É preciso evitar que cidadãos sérios fiquem expostos ao vexame de passarem por corruptos, nem que seja por um segundo apenas das suas vidas, só porque são políticos ou figuras públicas. E não me venham com partidarices ou cores políticas. Na defesa do bom nome de uma pessoa, seja ela quem for, não pode haver adversários. Porque são estes momentos que põe à prova a nossa condição humana. Estou certo que a Jorge Coelho nenhum testemunho de solidariedade desagravará inteiramente a ofensa recebida. Mas ainda assim, aqui fica o meu.

(*) Quadratura do Círculo, Sic Notícias


O seleccionador-astrólogo

Há pouco mais de três semanas e na sequência de uma amável interpelação do Paulo Cunha Porto, escrevi aqui:

(...) face às práticas mágicas perfeitamente estereotipadas que continuam a ter lugar, independentemente de raças e de graus de cultura, é ainda Gehlen quem considera que a extraordinária expansão da magia em todo o mundo e a sua persistência em todas as épocas só pode radicar em algo de antropologicamente fundamental.

Acontece que talvez nem Arnold Ghelen se atrevesse a imaginar que, em pleno terceiro milénio, e no coração de uma europa da cultura, a dita magia pudesse vir a dar cartas, logo numa das suas mais aberrantes modalidades: a pura crendice.

O certo é que Raymond Domenech, seleccionador francês de futebol, acaba de adiar a escolha do guarda-redes para o Mundial de 2006 (que já deveria ter anunciado), por razões astrológicas. "Consultei os astros. Não era o dia certo"- disse (**). E mais adiantou que "não confia nos jogadores nascidos sob o signo do Escorpião - caso de Robert Pires, do Arsenal - e que os futebolistas do signo Leão não são bons defesas, porque têm tendência para se exibirem" . Mas que signos mais desagradáveis. Ainda bem que sou Virgem.


(*) M/post "A magia do gato", de 16.10.2005,
(**) Cf. Público de hoje.

09 novembro 2005

Como arquitectar um mau argumento

Exemplo de um argumento defeituosamente arquitectado:

"(...) o jornal [JN] deu destaque de título apropriado, pois o que disse o senhor presidente, foi que quer resolver o problema."

Arqt.º Gomes Fernandes, hoje no "Passeio Público" do JN *

O que é que tem a vontade de resolver o problema com a correcção ou incorrecção do título? Depois desta, só falta alguém vir dizer que o título foi apropriado porque Rui Rio quer fazer um bom mandato...

* Não consegui encontrar o link.

Três questões do jornalismo

Aviso amigável: tamanho XL

Verifico que o provedor do DN também abordou (e em boa hora) o caso Rui Rio-JN. De salientar que o fez na sua qualidade de provedor e que, embora esclareça que não se trata de analisar ou colocar objecções ao editorial de António José Teixeira, naturalmente, não poderia deixar de o ter como referência obrigatória no seu douto comentário. Como o confirmam as inequívocas alusões que lhe faz, especialmente nestas duas passagens: Assinalei isso ao director, que, mais uma vez, me respondeu prontamente (…) e escreveu António José Teixeira em resposta ao meu e-mail. Mas ainda bem. O que não me parece tão bem, apesar do respeito e consideração com que leio tudo o que José Carlos Abrantes escreve, é que, de algum modo, tenha fugido ao assunto – como, aliás, já indiciava o seu título "Quem decide o que é notícia" – quando acaba por desenvolver analiticamente uma questão que o comunicado de Rui Rio nem sequer levanta, pois não é com a “notícia” que este último se mostra preocupado. Mas, como se verá, esta é apenas a primeira das minhas três discordâncias em relação ao texto do provedor do DN. Vamos então aos factos…e às razões.

Quem decide o que é notícia

Tanto quanto o comunicado da CMP permite concluir, Rui Rio pretende apenas evitar a deturpação jornalística das informações que venha a prestar à comunicação social e, pelos vistos, só à imprensa . Podemos discutir se o seu receio tem ou não tem razão de ser, se é ou não é legítimo. O que não podemos é deixar de nos cingir ao que ele realmente disse, tanto mais que, é precisamente contra falhas deste tipo que se quer (e muito bem) precaver. E do que realmente disse não se infere,
como parece sugerir José Carlos Abrantes, que queira decidir o que é notícia (também era o que faltava). Aliás, todos sabemos que um autarca tem acesso aos acontecimentos, aos factos, mas não à notícia, pois esta é da exclusiva competência profissional do jornalista. Um autarca pode relatar mais acontecimentos, menos acontecimentos, mais factos ou menos factos, pode fazê-lo oralmente ou por escrito, por telefone, na rádio ou na televisão, pode ser profundo ou superficial, contar tudo ou não contar nada. Mas é sempre ao jornalista que compete decidir sobre a noticiabilidade de tais factos em função dos respectivos índices de realidade, veracidade, actualidade, interesse público ou quaisquer outros que, na circunstância, considere mais relevantes. Ora se nada disto é novo, o que tem a ver a decisão de Rui Rio com a questão de saber quem decide sobre o que é notícia?

A legitimidade das entrevistas escritas

É legítimo haver entrevistas escritas? – pergunta retoricamente o provedor do DN que, por isso mesmo, logo adianta: só excepcionalmente. Mas o ponto é que não há aqui qualquer legitimidade de excepção, há, isso sim conveniência (ou não) em optar por esta ou aquela forma de entrevista. A entrevista escrita é perfeitamente legítima e, aliás, tornar-se-á porventura cada vez mais rotineira, devido às actuais concepções de espaço e de tempo. Não vieram as novas tecnologias fazer com que, cada vez mais, estar em todo o lado seja não sair de lado nenhum? Mas nem de propósito, ficamos a saber pelo próprio provedor que dias antes o DN (de que António José Teixeira é director) tinha publicado uma entrevista com Alberto Costa, ministro da Justiça, que fora dada por e-mail. E não colhe a desculpa adiantada pelo director do DN de que tal só acontece quando “o contacto directo não é viável”. Se o contacto directo não era viável e se do ponto de vista jornalístico considera, tal como o provedor, que a entrevista é, por natureza, presencial (1), pessoal, olhos nos olhos porque insistiu o seu jornal em dar ao email do ministro a forma de entrevista? Se o director do DN é, por sistema, contra as entrevistas escritas, não teria sido mais correcto e conforme às suas convicções jornalísticas elaborar uma notícia com base no conteúdo desse email, do que incorrer naquilo que agora tanto parece lhe repugnar e, ainda por cima, ao que suponho, sem disso ter dado prévio conhecimento ao leitor? Mas é claro que as entrevistas escritas são tão legítimas como por qualquer outro meio ou formato. No caso do email, então, torna-se até particularmente expedita a troca de informações, perguntas, pedidos de esclarecimento, novas perguntas, novas respostas, tudo praticamente ao instante. Quase apetece dizer que se é realmente informação e rigor que o jornalista procura, talvez nem haja meio mais eficaz e fidedigno do que a escrita, por exemplo, via email.

O direito a controlar a interpretação das suas palavras

O provedor considera ainda que é inquestionável que Em democracia, os agentes políticos não podem, ou não devem, recusar-se ao questionamento directo dos jornalistas, muito menos têm o direito de controlar a interpretação das suas palavras, como escreveu António José Teixeira em resposta ao seu e-mail. Passo por cima do “questionamento directo” que não surge suficientemente explicitado (pois, como se sabe, o questionamento escrito também pode ser directo ou indirecto) e vou, isso sim, directo à afirmação de que em democracia, os agentes políticos não têm o direito de “controlar a interpretação das suas palavras”. Ora essa. Se os agentes políticos que são entrevistados não têm o direito de controlar a interpretação que o jornalista faz das suas palavras quem tem afinal esse direito? (2) Defende António José Teixeira que o detentor de um cargo político que concede uma entrevista a um dado jornal e no dia seguinte lê com os seus próprios olhos que as suas palavras foram deturpadas, deve permanecer piedosamente quieto, calado e submisso? Mas que democracia seria essa? Vejo agora que, afinal, talvez faça algum sentido a conhecida expressão popular “toma lá que é democrático”.


(1) Seja-me permitido colocar as maiores reservas a esta caracterização da entrevista como “presencial, pessoal, olhos nos olhos” que me parece francamente ultrapassada. Será que as entrevistas pelo telefone, por teleconferência ou pela web, não são verdadeiras entrevistas?

(2) Evidentemente que já não têm o direito de controlar a interpretação que os leitores podem fazer das declarações que prestou, desde que tais declarações tenham sido veridicamente reproduzidas ou editadas. Mas também não é isso que está sobre a mesa.


08 novembro 2005

O irónico contraste

Pelo caminho que as coisas estão a tomar - APOSTO - daqui a dois ou três dias, os jornalistas serão os culpados pelos distúrbios nos arredores de Paris. (jmf)

Pelo caminho que as coisas estão a tomar - APOSTO - daqui a dois ou três dias, os jornalistas não serão culpados de nada. (ilustre desconhecido)

Pode o presidente da CMP definir o que é de interesse público?

A questão que o provedor do JN levantou na edição do passado domingo, faz todo o sentido. Se Rui Rio comunicou que vai restringir o seu relacionamento com os media exclusivamente às matérias de inegável interesse público é esse o problema que se põe: quem estará em condições de determinar se este ou aquele assunto tem interesse público? Por muito que custe a Rui Rio admiti-lo, não faz o menor sentido que a Câmara chame a si uma competência exclusiva para o efeito ou que, na prática, se comporte como tal.

1.º
Porque Rui Rio deveria lembrar-se, antes de mais, que é parte no relacionamento com os munícipes e demais cidadãos (hoje, necessariamente, mediado pela comunicação social). Logo, não pode agir como se fosse o todo.

2.º
A sua decisão configura um julgamento em causa própria, muito semelhante, aliás, ao das reacções de alguns jornalistas. E isso, como se costuma dizer, vale o que vale. Que o mesmo é dizer, vale muito pouco.

3.º
Os cidadãos têm direito a fiscalizar o exercício de qualquer eleito e não apenas o de serem informados, muito menos o de serem informados apenas sobre o que o eleito entende informar. Sobre isto há que ser muito claro: um autarca deve conquistar o voto dos eleitores com o trabalho que desenvolve, com as obras que realiza, com as concretas decisões políticas que toma e não com uma gestão da informação que, em tese, lhe permite esconder tudo o que de menos bom acontece durante o mandato.

Seria por isso desejável que ambas as partes, Presidente da CMP e jornalistas, se sentassem à mesa, sem demora, para obter um consenso mínimo sobre as bases do seu futuro relacionamento mútuo. Consenso mínimo que bem poderia ter como ponto de partida, por exemplo, as sábias palavras do provedor do JN:

Não são os interesses da comunicação social ou do Executivo camarário que devem ser o critério desse entendimento, mas os interesses dos cidadãos, que uma e outra parte devem servir.

07 novembro 2005

Os jornalistas e os políticos

Talvez os jornalistas devessem, pois, ponderar a lição de Brecht e, condenando o Rio que transborda, condenar também, quando é caso disso, as margens que o comprimem.

Manuel António Pina in "Palavras", JN de 07 Novembro 2005.

Os jornalistas são muitas vezes escolhidos pelos políticos como bode expiatório para encobrir todo o tipo de irregularidades, incompetências ou simples aversões ao escrutínio público do seu exercício. Compreende-se. Desde logo porque é relativamente fácil a qualquer político conviver arrastadamente com um problema desse tipo à sua volta (no seu restrito círculo de colaboradores), mas o mesmo já não acontece quando um jornal ou outro meio de comunicação o dá a conhecer ao país inteiro. Só por isso a palavra dos jornalistas já seria bem mais poderosa do que a palavra do vulgar cidadão.

Sucede que, regra geral, é também uma palavra crítica e especialmente qualificada para dizer o que diz. Isso faz com que o jornalista não seja propriamente o "inimigo" que mais interessa aos políticos. Logo, à cautela, talvez seja preferível tentar cair nas suas graças, mesmo quando o preço a pagar for o de uma certa promiscuidade. Não, não é fácil ser jornalista. Às dificuldades técnicas da profissão, há a somar toda uma teia de interesses e seduções, golpadas ou meras pressões por parte daqueles que, actuando pela calada, se furtam aos holofotes da opinião pública. Mas, obviamente, não é esse o caso de Rui Rio o qual, de tão invulgar entre a classe política (independentemente da sua discutível bondade), pode ter accionado a menos feliz reacção corporativa de que fala Manuel António Pina na sua crónica de hoje, no JN.

Também por isso, ter corrido para o editorial de um jornal de referência (DN) a taxá-lo de espírito pouco democrático, transformando pessoalíssimos palpites em aparentes verdades objectivas à custa de indirectas tão abusivas como quem não receia as suas próprias palavras e as interpretações que se possa fazer delas (...) não foi uma maneira aceitável de rebater publicamente a decisão do autarca. Além de que parece igualmente pouco rigoroso sugerir que a medida de Rui Rio pôs em causa a liberdade de expressão quando se tratou apenas de a conformar. Argumentar com ideias sem denegrir as pessoas, justificar a avaliação de cada medida ou decisão política, exige abertura, tolerância e...persuasão. Chamar Rui Rio ou qualquer outro autarca de pouco democrático não é, nunca será, a melhor maneira de iniciar ou retomar um diálogo. Ora como muito bem propôs ontem o provedor do JN:

seria, porventura, mais produtivo, diante de problemas e discordâncias, que, em vez de se cavar um fosso entre as duas partes (jornalistas e Câmara), se procurasse definir bases para um entendimento. Não são os interesses da comunicação social ou do Executivo camarário que devem ser o critério desse entendimento, mas os interesses dos cidadãos, que uma e outra parte devem servir.

Nem mais.

06 novembro 2005

O que é a manipulação jornalística?

1.
Poder-se-ía simplesmente dizer que estamos perante um caso de manipulação sempre que haja violação do disposto no n.1 do já anteriormente referido Código Deontológico do Jornalista. Mas isso seria confundir o plano normativo do exercício do jornalismo com a sua dimensão ético-epistemológica que, como é sabido, nenhum código de procedimentos totalmente recobre ou aprisiona. Além disso, do ponto de vista axiológico interessa mais, neste caso, descobrir o que não se deve fazer em jornalismo do que inventariar apenas o que o código deontológico ou a própria lei não permitem. Nada feito, portanto. É melhor seguir por outra via. Mas pensando bem, o que se passa com a manipulação é, em grande medida, o que se passa em relação à própria verdade. Sabemos que se deve fugir da primeira e buscar a última, mas em nenhum caso chegaremos a tocar uma ou outra, na sua máxima expressão. E isto, para além de ser inconcludente, remeter-nos-ia para uma labiríntica pesquisa filosófica dos fundamentos últimos da manipulação. Talvez fosse muito interessante…mas não temos tempo.

2.
É nestas alturas que a lógica faz muito jeito. Tomemos, por exemplo, a noção de falácia. O que é uma falácia? Ainda que com alguma incompletude pode dizer-se que a falácia é um argumento inválido ou um raciocínio errado sendo que este último ocorre, como se sabe, quando se retira uma dada conclusão de premissas que nem lógica nem pragmaticamente a suportam, pouco importando se o erro é intencional ou não (1). Ora a falácia, como já se adivinha, é a verdadeira matriz da manipulação discursiva. Em ambos os casos, incorre-se no mesmo atropelo lógico que deu à luz o título do JN a que me venho referindo, e onde, para todos os efeitos, se anunciou uma conclusão que nenhuma das premissas (contidas no texto) autorizaria.

3.
Evidentemente que no que concerne a este caso do JN, sempre se poderá contrapor que embora o título não tenha sido o mais rigoroso, ainda assim 1) não afirmava propriamente o contrário daquilo que Rui Rio disse 2) não continha um elevado grau de divergência em relação às declarações do entrevistado e 3) mantinha até alguma proximidade semântica com o que era afirmado na entrevista. Logo, nestas condições só por manifesto exagero se poderia falar de manipulação jornalística. Mas o ponto é que esses são, como veremos, requisitos da própria falácia e, por consequência, também da manipulação. Ou seja, para que estejamos perante uma falácia, não basta que o argumento seja inválido, é preciso também que possua uma aparência de validade.

4.
É essa aparência de validade que transforma um erro de raciocínio num raciocínio falacioso. Porque se o erro for demasiado notório é lógico que por todos será detectado. A falácia é então tanto mais perigosa quanto mais se assemelha a um argumento válido. E o mesmo se diga da manipulação jornalística. Só há manipulação jornalística quando o raciocínio é aparentemente correcto. É o caso do raciocínio subjacente ao título do JN. Parece correcto, mas não é. Logo, independentemente do maior ou menor grau de intensidade, estamos perante um caso de evidente manipulação. Numa palavra: a reconhecida necessidade do título jornalístico atrair a atenção do leitor não legitima que se sacrifique o direito do leitor a uma informação isenta e rigorosa.

(1) Embora alguns autores distingam entre falácia e sofisma, reservando este último para quando há intenção de enganar, concordo com Desidério Murcho quando afirma que a distinção é irrelevante para a compreensão da argumentação.

Jornalismo, laxismo ou manipulação?

1.
O provedor do JN retoma hoje a questão do título de primeira página com que o mesmo jornal anunciava há uma semana atrás a entrevista a Rui Rio. Já expliquei aqui, com algum detalhe, o que me levou a considerar que esse mesmo título configura uma clara manipulação jornalística. Chegaram-me diversas reacções (que agradeço), umas a favor e outras contra. Não se estranhe, porém, que seja do meu maior interesse contribuir para a compreensão das divergências e não tanto o ficar a marcar passo sobre o consenso já obtido. O Tiago, por exemplo, não concordou nada comigo e teve a gentileza de o escrever. Já lhe respondi, no pressuposto de que o que nos separa é uma subtil questão hermenêutica.

2.
Hoje verifico que o provedor do JN também discorda – não já do que afirmei, é claro, mas de uma asserção semelhante (apenas isso) que constava do comunicado da CMP. Certo é que, na parte que respeita à posição que assumi, o provedor não deixa de conceder que realmente [o título] “não se pode considerar o supra-sumo” do rigor. Acrescenta até que “No caso presente, há, de facto, falhas a apontar ao JN”. Ora se o próprio Rui Rio já confirmou que o texto da entrevista traduz fielmente as suas declarações, as falhas a que o provedor se refere só podem respeitar à escolha do controverso título.

3.
Em resumo, o Prof. Manuel Pinto parece reconhecer o erro do jornalista (ou do jornal). Apenas discordará que se trate de manipulação jornalística. Mas se o provedor admite que houve falhas e não aceita o meu termo “manipulação”, pode muito bem acontecer que tal se fique a dever a mera diferença de entendimento sobre o que seja ou possa ser considerado como manipulação jornalística. Tentarei por isso precisar o meu conceito de manipulação, já a seguir, mas em post separado. Por agora o destaque vai para a isenção e frontalidade com que o provedor do JN aborda a questão. E bem preciso é, ao menos para servir de exemplo, já que, nem de propósito, na mesmíssima edição de hoje, meia dúzia de páginas à frente, Pedro Ivo Carvalho reincide no mesmo tipo de manipulação quando escreve:

***

“Em entrevista ao JN, o presidente da Câmara do Porto, Rui Rio, admite a possibilidade de “permitir” construções no Parque da Cidade. O assunto fez manchete da edição do jornal neste dia e veio revelar-se o primeiro acto de uma polémica que promete marcar o mandato do autarca agora absoluto. Porque Rio diz que não disse aquilo que disse.”

***

4.
Já nem me atrevo a comentar. Deixo apenas três simples perguntas:

a) É este tipo de jornalismo que promove e aprofunda a democracia?

b) Estará tal prática jornalística em conformidade com o Código Deontológico do Jornalista, nomeadamente, quando logo no seu ponto n. 1 estabelece que “O Jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão” e que “a distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público”?

6) Será o laxismo descritivo (do título) compaginável com o alto grau de rigor e exigência (moral, por exemplo) a que os jornalistas vêm submetendo os cidadãos que por este ou aquele motivo são notícia?

Três perguntas que, se me é permitido, gostaria de transformar em respeitosas interpelações ao provedor do JN.

Esta Juventude é mesmo irreverente

Não há nenhuma razão para acreditar que [Cavaco Silva] agora vai representar ideologicamente o nosso campo político (...)

(Presidente da Juventude Popular)

Esta Juventude é mesmo irreverente. Agora querem desacreditar os candidatos presidenciais que têm como principal objectivo derrotar o candidato "da direita"…

Humor virtual

Medeiros Ferreira, no Bicho Carpinteiro:

Mas o risco também conta, embora não esteja a ver alguém telefonar a Belmiro de Azevedo às 8h da manhã daquela segunda-feira a pedir-lhe responsabilidades pela derrota de Cavaco.

A avaliar por esta bela nota de humor virtual, a candidatura soarista não se leva demasiado a sério. Pode por isso dar-se ao luxo de reagir à tristeza das sondagens com momentos da mais pura diversão. Como este.

05 novembro 2005

O "realismo" socrático

No início era por interromper a linha do horizonte. Agora já é também por ser contra a memória e identidade do centro historico da cidade. Todas as razões servem para deitar abaixo um prédio que a ninguém incomodou durante 30 anos.

Há um ano atrás, o valor das indemnizações a pagar aos moradores era de doze a treze milhões. Quanto não será agora? Mas para Sócrates o país pode-se dar ao luxo de esbanjar todos estes milhões.

É realmente preciso algum descaramento: no mesmo dia em que nos lembra que "Os tempos são de realismo e realismo significa encararmos com determinação os tempos difíceis que vivemos para os ultrapassar" defende uma vez mais a demolição do Prédio Coutinho. Lá determinação não lhe falta. Quanto ao realismo... eu vou ali e já venho.

04 novembro 2005

Com um fã destes...

Paulo Barreto, filho adolescente de Álvaro Barreto, é entrevistado por Helena Sanches Osório. Também ele descreve Soares e Cavaco, assumindo-se como um fã do primeiro: "Acho que é um gajo porreiro. Os políticos, quando é preciso, têm que saber aldrabar e dar a volta ao povo. Têm que saber representar e o Soares é o máximo nisso". E continua: "Cavaco é muito diferente. Um homem corretinho que faz tudo a tempo e a horas, que parece uma estátua. Não é nada simpático mas é um bom primeiro-ministro. Completamente diferente de Soares que é uma simpatia mas não faz nada. Só come e dá jantares. Duvido que ele saiba o que se passa. A única vez que foi preciso, quando o governo caiu, foi visitar o Mitterrand e só depois voltou a Portugal. Assim até eu era capaz de ser presidente. Era capaz e adorava"

Via Mau Tempo no Canil

Fã de Soares? Ninguém diria...
Seja como for, estes pensamentos de adolescente merecem ser lidos com um generoso sorriso. Confirma-se: ser adulto deve ser muito chato, a gente é que já nem se dá conta.

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa

O meu post anterior não convenceu o Tiago que, no essencial, contesta esta minha afirmação:

Ora a verdade é que, contrariamente ao que Tiago Azevedo Fernandes aqui sugere, em nenhum ponto da entrevista Rui Rio afirma que “de facto vai ter que haver construções no Parque”».

"Não? Então vejamos" - diz o Tiago. Aí confesso que fiquei preocupado com a hipótese mais do que natural de me ter escapado algo na leitura da entrevista em causa. Para minha surpresa, porém, o Tiago transcreve as mesmas declarações de Rui Rio de que me servi para afirmar o que afirmei. Como através delas pode o Tiago concluir que Rui Rio disse que "de facto vai ter que haver construções no Parque" é um mistério que, sinceramente, não me sinto à altura de desvendar. Temo que nem ele mesmo.

O que sei é que quando o que está em causa (no meu post anterior) é unicamente o que Rui Rio disse ou não disse numa entrevista, Tiago prefere antes "apoiar" as suas conclusões naquilo que (em seu entender) o autarca poderia ter dito (mas não disse). Como o faz, por exemplo, aqui:

RR podia ter dito “nunca, jamais, em tempo algum!”. Mas não. Admite a possibilidade de (ele) abrir um debate. Amplo, “o maior”. Mas possível. E que pode levar ao aparecimento de “outros pressupostos”…

Daí a pergunta: como reagiria o Tiago se, pela minha parte, também ficasse aqui a criticar não o que o escreveu mas o que (suponho, desejo ou admito) poderia ter escrito? Com o devido respeito, caro Tiago, uma falácia dessas nem ao diabo lembraria. Qualquer debate depende do consenso mínimo de que... uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.


À margem:

O Tiago adianta ainda que considera "muito mais importante o que diz RR do que o que escreve AJT". É uma opinião que respeito mas de que não comungo. Primeiro porque o que diz Rui Rio (fora da comunicação social) atinge apenas um auditório muito limitado enquanto que o que escreve António José Teixeira no DN chega, no mínimo, a todo o país. Segundo, porque se a importância de um jornalista se pode avaliar pelo que diz ou escreve, já a importância de um autarca medir-se-á essencialmente pelo que faz. Mas nem isso permite a comparação, tão diferentes são as suas actuais funções e responsabilidades públicas ou sociais. Por mim, tenho a mesma consideração pelos dois. Só não os considero isentos de crítica. Claro.

03 novembro 2005

Democracia por editorial

Aviso amigável: tamanho XL

1.
Há muito que acompanho o que diz António José Teixeira, agora Director do DN. Aprecio-lhe especialmente o dom de fazer parecer muito simples o que na realidade é bem complexo, o modo seguro como esclarece, informa e descodifica cada facto político e, não menos importante, o estilo sereno e sempre educado para com as diferentes personalidades a quem se refere ou dirige nos seus comentários. Some-se a tudo isto a isenção de quem não é isento (quem o é?) mas que tudo faz por o ser e aí teremos o meu comentador ideal. Estranhamente, porém, algo se alterou entretanto, ou no seu comportamento ou na minha percepção. Notei-o, pela primeira vez, naquela sua participação de há dias na Sic Notícias, num debate que integrava, além dele próprio, os também directores de jornais, José Manuel Fernandes (Público) e Inês Serra Lopes (Independente). Já aí observei uma crispação, nada habitual nele, aquando das intervenções do director do Público, ao refutar imediatamente, palavra por palavra, tudo o que José Manuel Fernandes dizia de menos agradável para a candidatura soarista, fosse de censura directa a Mário Soares ou de indirecto elogio a Cavaco Silva. A dada altura, quase dava a ideia de que se sentia na obrigação de defender o candidato Mário Soares, seu companheiro de programa no “Sociedade Aberta”. Ou se quiserem, a cada tirada mais “pró-cavaquista” de José Manuel Fernandes, contra-argumentava num registo “pró-soarista”, imitando assim o seu interlocutor naquilo que mais lhe queria criticar.

2.
Naquela altura pensei: foi apenas um momento menos feliz. Mas hoje sou levado a crer que António José Teixeira, vá-se lá saber porque razão (ou razões), terá mudado de estilo, tal o violento ataque que em nome do seu conceito de democracia
aqui desfere contra Rui Rio. Não que me pareça que Rui Rio teve uma acertada reacção ao decidir que a partir de agora só dará entrevistas escritas e sobre assuntos que (em seu entender, presume-se) tenham interesse público. Parece-me mesmo uma medida manifestamente desproporcionada à reparação do que está em causa e, ou muito me engano, ou não terá pernas para andar. Mas não se pode criticar apenas a reacção do autarca e passar uma esponja sobre a especulação ou manipulação jornalística que lhe deu origem. Ora a verdade é que, contrariamente ao que Tiago Azevedo Fernandes aqui sugere, em nenhum ponto da entrevista Rui Rio afirma que “de facto vai ter que haver construções no Parque”. O que ele diz, mais exactamente, é que “Quando digo que não há construções, estou a referir-me à especulação imobiliária. Não estou a imaginar, mas pode haver um qualquer pormenor, um remate…” e sobre o assunto nada mais acrescenta a não ser isto: “Vou dar uma resposta arriscada: admita que aparecem outros pressupostos que me levem a equacionar outro raciocínio. É evidente que para chegarmos a outra solução, tinha sempre de passar pelo maior debate que alguma vez foi feito no Porto.” O homem bem frisou: “Não estou a imaginar”. Mas o jornalista passou logo para o título que ele imaginou o que, de facto, não imaginou. O homem bem esclareceu: “pode haver um qualquer pormenor, um remate” mas o jornalista transportou para o título o termo “construções” e não o simples “pormenor, um remate” que previsivelmente não atrairia tantos leitores, mesmo sendo a única verdade. Finalmente o homem disse claramente que só equacionaria outro raciocínio se aparecessem outros pressupostos, mas o jornalista não se sentiu na obrigação de esperar por tais pressupostos e colocou no título, “preto no branco” ou melhor, “branco no preto”, que Rui Rio admite construções no Parque da Cidade. Se isto não é manipular declarações de um entrevistado o que é então?

3.
Curiosamente, António José Teixeira passa por cima de tudo isto, ou seja daquilo que, enquanto jornalista e agora também director de um jornal de referência como é o DN, talvez lhe devesse importar em primeiro lugar. Passa por cima, portanto, de um tipo de jornalismo sensacionalista que não hesita em “esticar” as declarações dos entrevistados para chamar a atenção dos leitores. Passa por cima, afinal, de um momento de jornalismo enganoso, como não ficaria mal a António José Teixeira reconhecer. Mas também percebo que, ao menos corporativamente, isso seria bem mais complicado do que vestir à pressa o jornalista de vítima e o autarca de algoz, como acabou por fazer. E é ver como o director do DN molha a pena no tinteiro da democracia só para taxar Rui Rio com “um espírito pouco democratico”, que é o que parece ter deduzido mais ou menos psicanaliticamente da preocupação do autarca em querer “controlar as interpretações das suas palavras”. É ver como ignora olimpicamente as responsabilidades dos seus colegas jornalistas mas já vê com impressionante nitidez que o “detentor de um cargo político” tem obrigações de esclarecimento dos seus concidadãos e até adita que isso pressupõe facilitar o acesso dos jornalistas às fontes.

4.
Aliás o que não faltam neste seu editorial são os pressupostos. São pressupostos e mais pressupostos como acontece sempre que não temos mais nada a que nos agarrar. Por exemplo, no seu entendimento, a liberdade de expressão própria da democracia pressuporia “circulação, interactividade, argumentação” mas já não a própria liberdade do autarca se expressar no momento, no lugar e da forma que o seu juízo político ditar, independentemente do resultado poder ou não agradar a este ou aquele jornalista ou meio de informação. Por último, temos a sua “lição” de que “Em democracia não existe a interpretação, existem interpretações” acompanhada da suspeição que lança sobre Rui Rio de “recear as suas próprias palavras e as interpretações que se possa fazer delas”. Ora se, como diz, em democracia “não existe interpretação, existem interpretações” tem aí mais uma razão para aceitar de uma vez a interpretação que o autarca fez do infeliz episódio. É esse o justo preço a pagar por quem comunga de tão “democrático” relativismo. Quanto ao receio de Rui Rio pelas outras interpretações, há que dizer que na argumentação não pode valer tudo. Só António José Teixeira parece não ter ainda percebido que as únicas interpretações de que Rui Rio tem receio (e, pela amostra, receio bem fundado) são as enganosas interpretações de alguns jornalistas. Dói, mas é a verdade.

02 novembro 2005

Fará a vida algum sentido?

1.
O sentido da vida não será “o problema central da filosofia” mas talvez faça sentido considerar que sempre permaneceu (e permanecerá) como pano de fundo de tantos e tantos outros problemas que suscitam a reflexão filosófica. É o caso do problema do cepticismo, do problema do bem, do problema da existência de Deus e do problema dos universais, como bem lembra Desidério Murcho na sua coluna “Vale a pena traduzir” no "Público" do passado sábado. Dir-se-á até, que um posicionamento teoricamente mais sustentado sobre esta eterna questão do sentido da vida, muito dependerá do aprofundamento de cada um dos referidos problemas filosóficos , tão intimamente ligados se mostram à definição do nosso próprio modo de ser (e viver).

2.
É precisamente do sentido da vida que nos fala John Cottingham no seu livro “On the Meaning of Life” , do qual, em boa hora, Desidério Murcho nos faz uma excelente apresentação crítica. Começando por notar que Cottingham “entende que uma vida religiosa é, pela sua prática, mais satisfatória do que uma vida não religiosa” e que “é a promessa de imortalidade que para o autor faz a diferença en­tre o sentido e a falta dele”, Desidério Murcho avança com uma dupla objecção que vai buscar aos consagrados filósofos Thomas Nagel e Bernard Williams. Segundo o primeiro, “se uma vida não tem sentido nâo é por ser eterna que o ganha, e se o tem não é por ser finita que o perde” enquanto que para o segundo, “uma vida com sentido poderá até perdê-lo caso se prolongue indefinidamente”. Convenhamos, portanto que, em termos estritamente racionais, não se vê como o argumento da promessa da imortalidade pode contribuir para a clarificação do problema do sentido da vida.

3.
Mas é já na última página do seu livro que John Cottingham notoriamente claudica em termos argumentativos quando, a avaliar pelo excerto que nos traz Desidério Murcho, acaba por abandonar o primado da compreensão e desliza, digamos assim, para uma filosofia de auto-ajuda. É o que faz, por exemplo, ao defender que “por causa da fragilidade da condição humana, precisamos de mais do que da determinação racional para nos orientarmos para o bem. Precisamos de ser sustentados por uma fé na resistência do bem; precisamos de viver à luz da es­perança”. Precisamos, precisamos, precisamos – repete Cottingham, sem ao que parece, nem por uma vez explicar a razão de ser dessa necessidade. Mas não é, no mínimo, parodoxal que um filósofo para quem “só Deus poderá dar sentido à vida” se furte a uma explicação minimamente racional sobre como se chega a tão segura convicção? Mais: como chegar à ideia de que “só Deus poderá dar sentido à vida” sem primeiramente ter uma noção do que é o próprio “sentido da vida”?

4.
Não está em causa, naturalmente, se as conclusões de Cottingham são verdadeiras ou falsas. O que está em causa é a gritante falta de legitimação racional para o que afirma. Por outras palavras, as suas conclusões podem até ser verdadeiras mas partem de premissas falsas ou perfeitamente questionáveis, quando não, ocultas. E nessa medida, nenhuma retórica pode aspirar a uma adesão racional do respectivo auditório. Daí que Desidério Murcho feche a sua apresentação deste modo muito certeiro: "Os filósofos ateus não ficarão persuadidos por este argumento [de Cottingham], objectando que se a religião é apenas uma espécie de cenoura para nos manter no caminho do bem, voltamos ao inaceitável Deus primitivo do castigo e da recompensa – estamos ao mesmo tempo a prostituir o bem, que deve ser praticado por si e não pela recompensa numa vida do além.” Nem mais. Mas como é óbvio, nenhuma objecção ou controvérsia dispensa a leitura desta obra. Antes pelo contrário.

Excerto de um livro não anunciado (262)

Numa palavra, é necessário que os intervenientes, sem quebra da convicção com que defendem as suas propostas, revelem abertura às eventuais críticas ou objecções que lhes sejam dirigidas e que podem, eventualmente, enriquecer as soluções por si apresentadas. Ora como sabemos, nada disso se passa em tais debates, pois neles cada representante político costuma bater-se até à exaustão pelas soluções que o seu partido propõe, mas por regra, ignora ostensivamente as propostas dos restantes partidos, tal como se elas não pudessem conter um único aspecto ou uma única medida aceitáveis. Logo, estamos aqui em sede da já referida retórica negra, mais ou menos manipuladora. O mesmo se diga quanto ao tipo de relacionamento oposição-governo que se instala após as eleições, em que o confronto surge normalmente viciado pelos interesses de cada facção: a oposição denunciando as promessas que o governo ainda não cumpriu e o governo acentuando as promessas que já concretizou. Do ponto de vista da retórica, nenhum destes dois comportamentos é exemplar, pois ambos ficam muito aquém do que seria necessário para o cabal esclarecimento dos respectivos eleitores. Mas ainda assim, será possível afastar destes a responsabilidade pela escolha que fizeram livremente através do seu voto? Não detêm eles também a última palavra na eleição dos governantes? Eis aqui a analogia que se pode fazer entre a política e a retórica. Os eleitores, na primeira e o auditório na segunda, não se podem alhear das obrigações que lhe são próprias: escutar a palavra que lhes é dirigida, descobrir as razões expressas mas também as implícitas de quem lhes fala, analisar criticamente as soluções propostas e fazer a escolha preferível. Fazer, afinal, aquilo a que já são chamados no seu quotidiano, quando negoceiam a compra de um televisor, quando entram num hipermercado, quando discutem política com um amigo: apreciar a valia de uma proposta, resistir à sedução consumista, argumentar contra ou a favor de uma causa e tomar decisões.